Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

New York Times

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Refugiados nucleares vivem no limbo

Moradores desistem de voltar a Fukushima

População desconfia das promessas de descontaminação

Por MARTIN FACKLER

Namie, Japão

Todos os meses, Hiroko Watabe, 74, regressa desafiadoramente por algumas horas à sua casa abandonada, perto da destruída usina nuclear de Fukushima. Usando máscara cirúrgica, com dois medidores de radiação pendurados no pescoço, ela se abaixa para arrancar as ervas daninhas.

Watabe mantém o quintal limpo para provar que não desistiu da sua casa, desocupada há dois anos, depois que um terremoto de magnitude 9 e um tsunami devastaram a usina, a 8 km de distância. Nem todos os vizinhos assumem o mesmo risco. Casas outrora bem-cuidadas agora têm

as portas bloqueadas pelo mato que chega à altura do peito.

"No meu coração, sei que nunca mais poderemos morar aqui", disse Watabe, que veio de carro com seu marido numa viagem de uma hora a partir de Koriyama, cidade onde vivem desde o desastre. "Mas fazer isso nos dá um propósito. Estamos dizendo que esta ainda é a nossa casa."

Em meio aos frequentes relatos sobre o desastre ambiental na usina Fukushima Daiichi -onde centenas de toneladas de água contaminada continuam vazando para o oceano Pacífico e onde foi noticiado, em 7 de outubro, que uma bomba usada para resfriar um dos reatores danificados havia parado, possivelmente por falha do operador-, uma crise humanitária vem acontecendo. Os quase 83 mil desabrigados nucleares das áreas mais atingidas ainda não podem voltar para casa.

Alguns relutantemente decidiram morar em outros lugares, mas dezenas de milhares estão em um limbo jurídico e emocional, enquanto o governo mantém as esperanças de que eles possam um dia voltar.

À medida que esperam, muitos vão ficando amargurados. A maioria apoia o objetivo de descontaminar as cidades para que as pessoas possam voltar a casas que, no caso de algumas famílias, são habitadas há gerações. Agora esses moradores suspeitam que o governo já saiba que a limpeza levará anos ou mesmo décadas a mais do que o prometido, conforme alertam especialistas, mas que não admita isso por medo de inviabilizar o plano de religar outras usinas nucleares do Japão.

Isso deixa poucas boas opções para a população de Namie e de muitas das outras dez cidades desocupadas. As pessoas podem continuar vivendo em moradias temporárias abarrotadas, recebendo uma compensação mensal modesta do governo. Ou podem tentar construir uma nova vida em outro lugar, algo quase impossível para muitos se o governo não admitir derrota e pagar uma indenização total.

"O governo nacional nos manda esperar", disse Tamotsu Baba, prefeito da cidade de Namie, de 20 mil habitantes. "Os burocratas querem evitar assumir a responsabilidade por tudo o que aconteceu, e nós, plebeus, pagamos por isso."

Para os moradores de Namie, a falta de clareza do governo não é novidade. No dia em que eles fugiram, os burocratas em Tóquio sabiam, com base em modelos informatizados, que a direção tomada por eles poderia ser perigosa, mas não disseram isso por medo de gerar pânico. Os moradores rumaram para o norte, diretamente na direção de uma coluna de radiação.

Antes do desastre, Namie era uma pacata comunidade agrícola e pesqueira. Hoje, está dividida em setores codificados por cores, as quais denotam o grau de contaminação nas várias áreas e quanto tempo os ex-moradores podem permanecer durante as visitas limitadas, sempre em horário diurno. Eles recebem dosadores de radiação ao entrarem e são examinados na saída. Uma placa alerta sobre vacas que vagam em estado semisselvagem desde que foram soltas por seus proprietários em fuga.

Ultrapassados os postos de controle, Namie é uma cidade-fantasma, com ruas vazias, cheias de lixo e mato. Algumas casas rurais tradicionais, de madeira, sobreviveram ao terremoto, mas não à negligência. Elas desabaram depois que a chuva se infiltrou, apodrecendo suas vigas de madeira.

As autoridades reocuparam a esquina da prefeitura, onde montaram o Escritório para a Preparação do Retorno à Cidade, que somente instalou banheiros portáteis e alocou guardas para evitar saques na região. O governo espera mobilizar trabalhadores para retirar várias toneladas de terra contaminada dali. Mas há um obstáculo: existem apenas dois lugares que poderiam armazenar a terra tóxica -seriam necessários 49.

Recentemente, o governo admitiu que essas atribulações causaram atrasos irremediáveis à operação de limpeza em 8 das 11 cidades, as quais as autoridades originalmente prometeram limpar até março. Nenhuma nova data foi estipulada. Mesmo em lugares onde a limpeza já começou, outros problemas apareceram. A retirada da terra teve serventia apenas limitada na redução dos níveis de radiação, em parte porque a chuva traz mais contaminantes das montanhas próximas.

As visitas de Watabe costumam ser emocionalmente dolorosas, além de assustadoras. Ela diz que a loja de veículos do seu marido foi roubada. Seu quintal foi invadido por um perigoso javali, que ela conseguiu expulsar. Ela considera que capinar o acesso à garagem é algo tão perigoso que chegou a afastar com acenos um visitante que ofereceu ajuda, apontando seu medidor, que indicava um nível de radiação 2,5 vezes superior ao que habitualmente motivaria uma desocupação.

Ela evocou reminiscências da sua comunidade, outrora tão unida, onde os vizinhos paravam para tomar chá e bater papo. Aqui ela criou seus quatro filhos, e seus dez netos eram visitantes habituais: bichos de pelúcia e outros brinquedos estão espalhados entre os destroços.

O filho mais velho de Watabe -que morava na mesma casa, com a sua própria família, e que deveria assumir no futuro o negócio familiar- prometeu nunca mais voltar. Ele se mudou para um subúrbio de Tóquio, temendo que qualquer tênue associação com Namie causasse às suas duas filhas o mesmo tipo de discriminação que os sobreviventes das bombas de Hiroshima e Nagasaki enfrentaram.

"Os jovens já desistiram de Namie", disse Watabe. "Só os velhos querem voltar." Seu marido, Masazumi, acrescentou: "Mesmo nós vamos desistir em breve". Seus ex-vizinhos na metade oeste da cidade têm ainda menos chances de voltar. A casa da família Watabe fica na zona de radiação média. A maior parte do lado oeste está na pior zona de radiação.

A estrada que sai do centro da cidade e sobe serpenteando um desfiladeiro de ruidosas corredeiras parecia idílica, exceto pelos gritos de um medidor de radiação. Sempre se previu que a limpeza aqui seria mais difícil, por causa das dificuldades decorrentes de se tentar varrer encostas inteiras.

Perto da entrada da sua casa rural de três séculos de idade, Jun Owada, 84, varria do seu chão de tatame as fezes dos ratos que se instalaram ali quando ela foi embora. Ela voltou naquele dia para realizar um ritual tradicional de luto, lavando a tumba do seu marido, que morreu antes do terremoto.

Ela decidiu virar a página e está morando com um filho na periferia de Tóquio, embora volte para homenagear um passado que ela está deixando para trás. A cada visita, disse Owada, ela recebe uma dose equivalente a uma ou duas radiografias de tórax, mesmo quando permanece dentro de casa. Enquanto manuseava a vassoura, ela apontava coisas que não poderia consertar. Os arrozais em plataformas cresceram demais, e as espessas vigas de madeira da sua casa começam a apodrecer.

"A gente olha ao redor", disse ela, "e sabe imediatamente que não há como retornar".

Colaborou Makiko Inoue


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página