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New York Times

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Idealismo e tráfico de drogas

Por DAVID SEGAL

Os últimos momentos de Ross Ulbricht como um homem livre foram suficientemente ruidosos para atrair uma multidão. Funcionários de uma biblioteca de San Francisco escutaram uma pancada e imaginaram que um usuário tivesse caído no chão. Em vez disso, eles se depararam com agentes federais cercando um franzino rapaz de 29 anos.

O objetivo da prisão, às 15h15 de 1° de outubro de 2013, não era simplesmente deter Ulbricht, mas também impedi-lo de fechar seu laptop. Aquele computador, de acordo com o FBI, era o centro de comando do Silk Road ("rota da seda"), o maior mercado negro de drogas do mundo.

O site era como um eBay voltado para atividades ilícitas, celebrado por usuários de drogas e investigado por quatro agências federais.

Se Ulbricht tivesse fechado o laptop, proteções de senha provavelmente teriam sido acionadas, colocando o disco rígido em um "maçaroca criptografada", como definiu Nicholas Weaver, pesquisador do Instituto Internacional de Ciências da Computação.

Ulbricht, segundo a queixa criminal do FBI, atuava sob o pseudônimo de Dread Pirate Roberts, nome de um personagem do romance e filme "A Princesa Prometida".

De acordo com o governo, foram encontrados arquivos operacionais na máquina, incluindo registros de contabilidade que indicavam uma renda pessoal de 600 mil bitcoins, a criptomoeda usada em cada transação do Silk Road -uma bolada que, naquele momento, valia US$ 80 milhões.

A queixa-crime arrolava acusações que incluíam as de tráfico de entorpecentes, pirataria informática e lavagem de dinheiro. Um indiciamento numa investigação paralela incluía um assombroso detalhe: parte do botim de Dread Pirate Roberts era gasta na encomenda de assassinatos. Nenhuma das ordens resultou em mortes de fato, dizem as autoridades. Uma delas, na realidade, era uma intrincada invenção de um agente federal se fazendo passar por narcotraficante.

A notícia da prisão de Ulbricht trouxe à tona o inevitável coro de "pegaram o cara errado" por parte de amigos e parentes. Certamente, Ulbricht era chegado em drogas quando adolescente, em Austin, Texas. E um amigo de colégio, Thomas Haney, disse que poderia até imaginar Ross comprando do Silk Road. Mas administrá-lo? Encomendar assassinatos? De jeito nenhum. "Seria como se eles acusassem minha mãe de tentar matar alguém", afirmou Haney.

Um homem que morou com Ulbricht em San Francisco se lembra de como ele certa vez ajudou uma sem-teto idosa e cadeirante. "Nós estávamos de pé na frente de um restaurante, e ele simplesmente correu para a rua e disse: 'Posso ajudá-la?'", contou o homem, que, como muitas pessoas, falou sob condição de anonimato.

Em uma conversa com seu amigo de infância Rene Pinnell, gravada em 2012 por meio do StoryCorps, um projeto nacional de história oral, Ulbricht disse que, quando estava no colégio, inicialmente se recusou a fazer sexo com a mulher que descreveu como sendo seu primeiro amor, por medo de acabar se magoando.

Um empório confiável

O Silk Road criou um bazar anônimo onde drogas podiam ser compradas sem que a pessoa saísse do conforto do lar. Nada de encontros cara a cara com revendedores sinistros. As transações podiam ser conduzidas por e-mail.

O site funcionava como um intermediário, abrigando o mercado on-line e mantendo o dinheiro sob sua custódia até os compradores confirmarem que os produtos haviam chegado. D.P.R., como o governo o identifica na sua queixa-crime, liberaria então o pagamento ao vendedor, ficando com até 15% do valor da transação.

Alguns meses depois de entrar em operação, em janeiro de 2011, o site estava prosperando. Vendedores postavam fotos e descrições dos produtos, algo como "Cocaína Cristal Pura 5G". Um guia oferecia dicas para novatos. Comentários com avaliações eram postados. Numa seção de "serviços", constava um tutorial sobre invasão de caixas automáticos. Mais de 800 listagens ofereciam "mercadorias digitais", e 169 citações eram de "falsificações".

O sistema transformou D.P.R. em um cibermultimilionário. Mas isso veio com sua parcela de problemas de gestão. Um dos maiores envolvia um empregado chamado Curtis Clark Green. De sua casa em Spanish Fork, Utah, segundo o governo, ele vendia drogas no Silk Road e, por fim, estabeleceu confiança suficiente com D.P.R. para se tornar um dos seus adjuntos.

Em dezembro de 2012, D.P.R. precisou de Green para uma tarefa especial. Um traficante que operava sob o codinome de "Nob" havia reclamado que as transações do Silk Road eram pequenas demais para valerem seu tempo. Green precisava achar alguém que topasse atuar na mesma escala.

Só que Nob não era um traficante. Ele era membro de uma força-tarefa que incluía investigadores da DEA (agência antidrogas dos EUA) e do Departamento de Investigações da Segurança Doméstica. Quando Green ajudou Nob a organizar a venda de um quilo de cocaína, no início de 2012, ele fez algo difícil de explicar: se ofereceu como intermediário para receber a cocaína na sua casa.

Foi preso, mas solto, e a droga foi mandada, conforme planejado, para o comprador, presumivelmente para evitar que D.P.R. percebesse que seu subordinado tinha sido apanhado. D.P.R. logo depois expressou a Nob seu ressentimento por Green ter fugido com bitcoins e lhe pediu ajuda. "Eu gostaria que ele fosse espancado, e então forçado a devolver os bitcoins que roubou", escreveu D.P.R. Mas logo ele mudou de ideia. "Pode mudar a ordem para execução em vez de tortura?", perguntou a Nob, explicando: "Eu temo que ele passe informações".

Nob disse a D.P.R. que conhecia "profissionais" que poderiam fazer o serviço. O custo era de US$ 40 mil em bitcoins adiantados, e outros US$ 40 mil depois do assassinato. Em 21 de fevereiro, Nob enviou fotos encenadas em que Green parecia morto.

Nos meses seguintes, D.P.R. iria pagar a um suposto pistoleiro chamado "Redandwhite" 150 mil bitcoins para matar um chantagista e depois um vendedor que parecia ter enganado um grande número de compradores. Quando Redandwhite observou que o golpista vivia com três colegas de quarto, D.P.R. foi convencido a matar todos os quatro, ao custo de US$ 500 mil.

O governo afirma que toda a empreitada provavelmente foi uma fraude. Autoridades não encontraram nenhum vestígio de crimes que combinassem com as descrições. No entanto, a disposição de D.P.R. em encomendar homicídios seria um argumento contra a concessão de liberdade sob fiança.

Do tipo que perdoa

Ross Ulbricht cresceu em um subúrbio de Austin, que sua mãe, Lyn, descreveu como sendo o bairro mais pobre de um bom distrito escolar. James McFarland, que conheceu Ulbricht em sala de aula, e outros dizem que ele era de natureza dócil, leal aos amigos e fã de conversas filosóficas.

Quando entrou na Universidade do Texas em Dallas, com uma bolsa de estudos integral, ele era um sujeito alto, magro e bonito, que bem poderia ter sido o líder de uma banda de rock independente.

Mas ele era vulnerável e se apaixonou perdidamente por uma namorada da faculdade. Os dois ficaram noivos, segundo Haney, mas romperam quando Ross descobriu que ela o havia traído com um dos seus melhores amigos. "Eu teria matado o cara, mas Ross o perdoou completamente menos de um ano depois", disse Haney.

Após se formar em física, em 2006, Ulbricht seguiu para a Universidade Estadual da Pensilvânia, onde obteve o título de mestre em ciências e engenharia de materiais. Voltou então para Austin.

A convite de Pinnell, Ulbricht se mudou para San Francisco em 2012. Foi morar numa república, onde disse aos colegas de quarto que seu nome era Joshua Terrey, segundo um artigo na revista "Forbes". Em agosto, dois meses antes de sua prisão, ele trocou repentinamente de república. Um desses colegas de moradia disse que ele era conhecido por seu nome verdadeiro e dizia ganhar a vida com a gestão de websites. Nada nele parecia fora do comum.

Nove identidades falsas

A primeira menção ao Silk Road na internet foi feita em janeiro de 2011, por alguém chamado "Altoid". Meses depois, apareceu outra, postada por um usuário com o mesmo apelido em um fórum chamado Bitcoin Talk. Essa pessoa estava procurando um profissional de tecnologia da informação para contratar. Os candidatos eram convidados a enviar um e-mail para "ross-ulbricht arroba gmail ponto-com".

Ulbricht entrou na mira. Em julho de 2013, o Departamento de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA interceptou um pacote do Canadá com destino ao seu endereço. O pacote continha nove identidades falsas, todas com fotos de Ulbricht, e cada uma com um nome diferente.

A revelação crucial no caso ocorreu algumas semanas depois de esse pacote ser interceptado. O FBI localizou e copiou o conteúdo dos principais servidores do Silk Road. O FBI declarou apenas que o servidor principal foi encontrado em "um país estrangeiro" que tem um tratado de assistência jurídica mútua com os EUA. A polícia federal americana recebeu uma cópia do servidor em 23 de julho. O site continuou a operar, para que D.P.R. não notasse. O que não está claro é a forma como a agência federal sabia onde os servidores estavam. Será que esse processo envolve a violação de leis ou de direitos constitucionais? Essa questão estará no centro da estratégia de defesa de Ross Ulbricht, segundo seu advogado, Joshua L. Dratel.

Reimaginando o comércio

O vídeo de 2012 do StoryCorps termina com Pinnell perguntando onde Ulbricht pretendia estar dentro de 20 anos. Após uma pausa, Ulbricht diz: "Eu quero ter tido um impacto positivo significativo sobre o futuro da humanidade".

A maioria dos amigos de Ulbricht entendia que ele era uma mente inquieta e curiosa, revirando-se atrás de alguma filosofia. O que poucos perceberam é para onde a sua busca filosófica o levara. Não muito tempo depois de concluir o mestrado, ele escreveu na sua página do LinkedIn que o seu interesse em física havia diminuído. "Agora meus objetivos mudaram", escreveu. "Eu quero usar a teoria econômica como um meio para abolir o uso da coerção e da agressão entre a humanidade."

Para isso, ele estava "criando uma simulação econômica para dar às pessoas uma experiência em primeira mão sobre como seria viver em um mundo sem o uso sistemático da força".

Seria o Silk Road essa simulação econômica? Sem dúvida, D.P.R. considerava o seu trabalho épico, por reimaginar os fundamentos do comércio. "Ele precisa de tudo o que tivermos", escreveu D.P.R. a propósito do Silk Road, pedindo aos usuários que prestassem atenção ao seu significado. "Façam isso por mim, por si mesmos, por seus familiares e amigos e pela humanidade."

Talvez seja aí que Dread Pirate Roberts, a mente criminosa, se sobreponha a Ross Ulbricht, o sujeito que auxiliou a velhinha cadeirante. Ambos realmente queriam ajudar.


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