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New York Times

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Inteligência/Roger Cohen

Um jogo menos bonito

Londres

O jogo bonito está menos bonito. É claro que está. Chovem denúncias de que o Qatar, rico emirado árabe e um dos países menos adequados para sediar uma Copa do Mundo, pagou suborno para ser escolhido como a sede do torneio de 2022.

Trabalhadores do subcontinente estão morrendo em números impressionantes enquanto estádios com ar-condicionado são construídos.

Ao mesmo tempo, no Brasil, na primeira partida da Copa, os anfitriões foram beneficiados por um pênalti contra a Croácia dado pelo árbitro japonês Yuichi Nishimura, por uma "falta" que foi fruto de sua imaginação. Em consequência, a vitória brasileira pareceu menos brilhante.

O problema, é claro, é o dinheiro (em vastas somas) e a propriedade do jogo (e desses recursos) por uma única organização, a Fifa, cujos controles internacionais parecem ter sido frouxos ou inexistentes. A decisão da Fifa de entregar as duas próximas Copas do Mundo à Rússia e ao Qatar hoje estão sob intenso escrutínio. Se o organismo que rege o esporte pode ser comprado, o esporte inteiro é contaminado.

Ninguém está sugerindo que Nishimura foi corrompido. Mas, quando se semeiam dúvidas sobre a ética das mais altas autoridades do futebol, qualquer decisão pode parecer suspeita. Joseph Blatter, o suíço que preside a Fifa, faria bem em deixar o cargo. A decisão sobre o Qatar se transformou em um fiasco e poderá ter de ser revertida quando a investigação for concluída.

Como o jogo mudou! (Mas tudo também mudou.) Revi uma gravação granulada da final de 1966, entre Inglaterra e Alemanha, que assisti aos dez anos, e revivi a pura felicidade daquela vitória inglesa por 4 a 2, a única Copa do Mundo ganha pelos inventores do esporte.

Lá esta George Cohen (não é meu parente) na retaguarda direita. Lá está Geoff Hurst disparando o infame chute que se tornou o terceiro gol inglês, quando a bola bateu na trave e então sobre a linha ou além da linha (essa disputa nunca foi resolvida). Lá está Hurst novamente galopando nos últimos segundos para explodir o quarto gol da Inglaterra, acompanhado pelo comentário imortal de Kenneth Wolstenholme: "Algumas pessoas estão no campo. Elas pensam que terminou. Agora terminou!"

As chuteiras eram todas pretas. Os homens eram todos brancos. Os shorts eram mais curtos. Os zagueiros, mais duros. A bola era mais pesada. O futebol era mais cru. Havia menos teatralidade. O jogo tinha sua beleza, mesmo que os atletas de hoje sem dúvida fizessem espirais ao redor daqueles jogadores de outra era.

Outra memória: assistir em Lagos à final da Copa do Mundo de 1998 entre França e Brasil, jogada em Paris, e ouvir os comentaristas nigerianos, depois do primeiro dos dois gols franceses, dedicarem a maior parte dos comentários a especular sobre o valor da propina que os franceses teriam pago para garantir a vitória. A coisa ficava cada vez mais engraçada enquanto suas estimativas subiam sem parar. É claro que o comentário refletia a natureza da vida na Nigéria, mais que uma verdadeira corrupção. Mas também foi um indício de que, nos 32 anos entre aquelas duas finais, o dinheiro tinha modificado a natureza e a percepção do esporte.

John Lanchester, em artigo no "London Review of Books", lembrou o árbitro equatoriano Byron Moreno, cujas decisões em uma partida entre a anfitriã Coreia do Sul e a Itália na Copa de 2002 foram totalmente bizarras (e puniam a Itália constantemente).

Ele foi suspenso no ano seguinte por dar 13 minutos de prorrogação em um jogo de campeonato no Equador (tempo suficiente para o time da casa vencer), e mais tarde foi preso no Aeroporto Kennedy em Nova York carregando seis quilos de heroína. Não é preciso dizer mais.

Mas um jogo menos bonito ainda é bonito, como demonstrou esta Copa do Mundo. Na África do Sul em 2010, assim como hoje no Brasil, a desorganização e o excesso de gastos provocaram previsões de desastre, só que o torneio foi um triunfo.

Esta Copa do Mundo, alvo de muitos protestos, produziu uma onda de entusiasmo. Com razão, dado número de gols e a qualidade das partidas iniciais.

O gol de empate de Robin van Persie contra a Espanha (no que seria um massacre de 5 a 1 pelos holandeses contra os campeões mundiais) foi um momento de pura magia -um arco sobre o goleiro espanhol perdido após um passe de peso e visão refinados.

E depois houve a expressão no rosto de John Brooks ao marcar de cabeça um gol da vitória tardio para os Estados Unidos contra Gana: feliz, incrédulo, emocionado -prova de que ainda há inocência no esporte global superpatrocinado e manchado pelo dinheiro.

O verbete de Brooks na Wikipedia foi imediatamente emendado -embora por pouco tempo- para incluir esta frase: "Ele é o maior americano desde Abraham Lincoln"


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