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New York Times

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Inteligência/Elif Shafak

Uma batalha nos corpos femininos

Istambul

Moradores de Istambul que caminham pelo conservador bairro de Fatih costumavam ver um outdoor com a modelo e atriz brasileira Adriana Lima anunciando um produto para depilação -até que um dia ela apareceu de burca. Alguém havia coberto Adriana com spray preto da cabeça aos pés. Perto da imagem, uma mão misteriosa havia rabiscado: "Não cometa indecência!".

Em toda Istambul, outdoors que exibiam corpos de mulheres foram vandalizados de maneira semelhante, desencadeando debates intensos sobre as formas femininas no espaço público.

Quando usei minha conta do Twitter para condenar o vandalismo, que vejo como uma forma de censura, a reação das minhas seguidoras foi acalorada. "Isto não tem nada a ver com censura", postou uma jovem que usava um véu islâmico. "É uma atitude necessária para livrar os homens do adultério pelo olhar." Não demorou muito para outra mulher responder: "Bem, não vou me cobrir para que seus homens possam se sentir puros".

Não é a primeira vez que outdoors com modelos provocam polêmica na Turquia. Em 2007, grandes fabricantes de trajes de banho reclamaram da proibição de colocar outdoors com imagens de mulheres em cidades governadas pelo Partido da Justiça e do Desenvolvimento, conhecido pela sigla turca AKP. A mídia turca rotulou o episódio como "proibição do maiô". Zeki Baseskioglu, que comanda a Zeki Triko Company, chegou a publicar uma foto de Mustafa Kemal Atatürk -o fundador da Turquia moderna- usando traje de banho, num protesto contra a restrição. Sob a foto, estava escrito: "Sentimos falta do sol".

Hoje existem rumores de que, assim como em 2007, anúncios das principais marcas mundiais estão sendo censurados. O jornal "Hurriyet" publicou uma entrevista com um funcionário público não identificado que admitiu que as pernas das modelos eram cortadas nas fotos para atender aos regulamentos municipais. Outro diário, o "Sozcu", destacou que em Istambul não há um só outdoor onde uma modelo com traje de banho possa ser vista por inteiro.

A Turquia está repleta de confrontos políticos e choques culturais, e, infelizmente de forma muito frequente, o campo de batalha são os corpos femininos. Homens de todas as correntes políticas se sentem livres para ensinar as mulheres sobre como devem se vestir e viver. O primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan fez discursos recomendando que todas as mulheres turcas tivessem pelo menos três filhos, e o governo fornece empréstimos sem juros a jovens casais para que antecipem o casamento. Mas as estudantes universitárias que se casam e têm filhos se tornam menos propensas a entrarem no mercado de trabalho depois de formadas. Ao mesmo tempo, houve pouco ou nenhum progresso para reduzir o número de meninas noivas e de casos de violência contra a mulher, que ocorrem a uma taxa alarmante. As turcas ouvem sistematicamente que seu valor depende de seus papéis como mães e esposas.

Durante décadas, as mulheres com véus islâmicos foram proibidas de trabalhar em órgãos públicos -um veto impopular, adotado pela elite sob o regime de Atatürk e recentemente anulado pelo AKP, de Erdogan. Embora os vetos aos véus no passado fossem indefensáveis e antidemocráticos, a questão hoje é que mulheres sem lenços sentem uma nova pressão social.

Recentemente, num dia de calor sufocante, entrei numa loja de roupas em Istambul e vi a balconista, uma loira por volta dos 40 anos, com jeans rasgados, uma camiseta moderna e cheia de tatuagens. Uma dessas tatuagens, na sua mão esquerda, me chamou a atenção em particular: era a assinatura de Atatürk. Nos últimos anos, essa assinatura se tornou um importante símbolo político, usado em adesivos, bandeiras, bandanas, blusas e, cada vez mais, em tatuagens. É amplamente adotada por aqueles que são críticos ao governo do AKP ou por aqueles que desejam o retorno do antigo "establishment".

Em seu dedo havia um anel com um verso do Alcorão. Ela percebeu que eu estava olhando e disse: "Eu uso os dois juntos: Atatürk e o Alcorão. É minha maneira de dizer àquelas senhoras com véu: 'Não sou como vocês. Sou uma mulçumana moderna'".

A balconista então me contou uma história: "Outro dia uma delas me repreendeu por meu anel. 'Quem é você para carregar um verso do Alcorão?', ela diz. Eu digo a ela: 'Quem é você?'. Ela me diz: 'Espero que você tenha a presença de espírito de tirar o anel quando vai ao banheiro'. Eu respondo, 'Como dá para deixar Deus fora do banheiro? Ele não está em todos os lugares?'. Então começamos a discutir".

E elas discutem. As mulheres da Turquia enfrentam-se por causa de anéis, bordados e tatuagens, sem contar os véus e o comprimento das saias. À medida que o país se torna mais polarizado, aumenta a lacuna cultural entre os que apoiam o governo e os opositores. Muitas pessoas se refugiam nos guetos dos que pensam da mesma forma. Existem comunidades muradas para a nova elite urbana conservadora, e comunidades muradas para a velha elite urbana laica. Existem hotéis e spas para os religiosos, e hotéis e spas para os modernistas.

A cultura da coexistência está ruindo. Aqueles que um dia se sentiram marginalizados criaram um ambiente onde mulheres modernas, como a balconista e muitas outras, se sentem cada vez mais pressionadas. Persiste uma atmosfera de desigualdade social e de intolerância. Em batalhas culturais, as mulheres sofrem mais do que os homens.

Como suas companheiras que foram forçadas a abandonar seus véus no passado, as turcas que não se cobrem se sentem desconfortáveis e rejeitadas em seu próprio país. Elif Shafak é autora de nove romances, entre eles "De Volta a Istambul" (Nova Fronteira).

Envie comentários para intelligence@nytimes.com


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