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New York Times

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Editorial/Serge Schmemann

Arte na Rússia ganha tons políticos

SÃO PETERSBURGO, Rússia

As "noites brancas" são uma época encantadora em "Piter", quando a escuridão é abolida, dando lugar a uma atmosfera festiva que se alastra pelos palácios grandiosos, os canais e o amplo rio Nievá. Entre shows de rock, regatas, cruzeiros pelo rio e museus suntuosos apresentando exposições formidáveis, os turistas tentam esquecer o conflito na Ucrânia e todo o nacionalismo e a política repressiva que moldam cada vez mais a imagem da Rússia no Ocidente.

No entanto, a arte raramente esteve livre da política na Rússia, cujos antigos governantes gastaram muita energia tentando cooptar ou reprimir escritores, poetas e pintores, o que dava aos artistas uma dimensão moral e política nem sempre desejada ou bem-vinda. É por isso que, com frequência, exposições na Rússia têm maior importância política e moral que em outros lugares.

A exposição atual no Museu Russo sobre arte produzida durante a Primeira Guerra Mundial, por exemplo, deveria ser apenas um dos diversos eventos em curso na Europa alusivos aos cem anos da irrupção desse terrível conflito. Porém, conforme observa a introdução à exposição, a Primeira Guerra foi a "guerra esquecida" sob o regime comunista, ofuscada na narrativa soviética oficial pela gloriosa Revolução Bolchevique.

Hoje o conflito está sendo minuciosamente estudado por uma nova geração de historiadores, mas ainda não há sequer um memorial na Rússia aos 2 milhões de russos mortos, nem vestígios de onde foram enterrados. Portanto, é uma surpresa para muitos visitantes da exposição que tantos grandes artistas russos daquela época extraordinariamente criativa -Vassily Kandinsky, Marc Chagall, Kazimir Malevich, Leonid Pasternak, Natalia Goncharova, entre outros- tenham participado do surto de fervor patriótico com pinturas, desenhos, caricaturas, esculturas, cartazes e gravuras populares conhecidas como "lubki" em apoio a uma guerra que, na propaganda comunista, foi desprezada como o último suspiro de uma ordem predadora, em vias de ser extinta.

Diante da vanguarda prolífica de São Petersburgo no início do século 20, e dos vários museus de arte magníficos na antiga capital imperial, deveria parecer natural que o principal museu local, o Hermitage, abrigasse a Manifesta 10, a exposição europeia de arte contemporânea realizada a cada dois anos em uma cidade diferente. Mas também aqui a política interferiu, pois há questionamentos sobre se a realização de uma exposição progressista na Rússia de Vladimir Putin implicaria uma legitimação de suas políticas. Após a anexação da Crimeia pela Rússia, houve clamores por um boicote.

Essa Rússia pós-comunista chegou a um ponto em que a mera existência desses questionamentos diz muito sobre como a imagem do país se deteriorou nos últimos anos. Conforme escreveu a historiadora da arte russa Yekaterina Degot antes da abertura da exposição, "estaria a situação tão ruim que a Manifesta 10 possa ser considerada um evento 'civilizador' positivo, independentemente de seu conteúdo, apenas por se realizar em um país que despenca no abismo da agressão militarista, do obscurantismo e do nacionalismo protofascista?"

Nem todos os russos concordam que a situação esteja "tão ruim". Mas o diretor da Manifesta, Hedwig Fijen, e o diretor do Hermitage, Mikhail Piotrovski, sentiram-se no dever de justificar a realização da exposição em São Petersburgo. Em um comunicado incluído no catálogo da exposição, eles dizem acreditar que a "arte tem um papel vital para nos ajudar a entender melhor nosso lugar neste mundo complexo".

Sem dúvida, as mostras, muitas delas nas novas e amplas instalações do antigo edifício do Estado-Maior Geral, defronte ao Palácio de Inverno, na praça do Palácio, contestam em grande parte a agenda antiliberal de Putin. Há uma galeria da artista sul-africana Marlene Dumas com retratos de gays famosos, incluindo russos como Serguei Diaghilev, Rudolf Nureyev e Piotr Tchaikóvski (que, segundo o atual ministro da Cultura, não era gay). O ucraniano Boris Mikhailov expõe uma série de fotos do protesto que durou um mês na praça Maidan em Kiev, e há uma videoinstalação descrita como uma "sátira brutal à democracia na sociedade russa atual", concebida pela russa Elena Kovilina.

Na Rússia, a arte é vista como uma forma de ativismo. Os melhores escritores, pintores e compositores sempre tiveram grande autoridade moral e frequentemente sofreram por isso. Por toda essa cidade assombrosa, placas e museus homenageiam artistas locais, como Alexander Púshkin, Fiódor Dostoiévski, Dmitri Shostakovich, Vladimir Nabokov e Joseph Brodski, que eram um contraponto às políticas impopulares de czares, comissários e presidentes.

A Rússia atual certamente é bem diferente dos tempos sombrios do terror. Mas, à medida que Putin tem ficado mais implacável com seus críticos, que a televisão transmite propagandas políticas lúgubres e que uma sólida maioria aprova o tipo de patriotismo agressivo e irredentista do Kremlin, a arte recuperou uma dimensão política. Um exemplo contundente foi a notória "oração punk" do grupo Pussy Riot em uma igreja de Moscou em fevereiro de 2012, pela qual duas das integrantes passaram mais de um ano em um campo de trabalhos forçados.

Não se sabe ao certo, porém, se essas exposições ajudarão os russos a entender melhor seu lugar no mundo, como espera Piotrovsky. E não há garantia de que obras de arte provocativas tenham o poder de emancipar a Rússia. Mas as noites brancas parecem sinalizar que o Estado jamais irá impor um comportamento politicamente correto à criatividade russa.


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