Folha de S.Paulo

Hélio Schwartsman

Questão de responsabilidade

SÃO PAULO - Vários leitores bem como meu amigo Rogério Gentile não gostaram do experimento mental proposto pela filósofa Judith Jarvis Thomson que descrevi na coluna de quarta-feira. Para eles, não há como equiparar uma gravidez que resulte de uma relação sexual consentida com a situação da pessoa que se vê compelida a dividir seus rins com um violinista famoso que precisa dessa ajuda para sobreviver.

No primeiro caso, a mulher é responsável pelo que lhe sucedeu, enquanto, no segundo, tudo ocorre à revelia do sujeito. A grávida teria, portanto, o dever moral de seguir com a gestação, o que não se aplica ao indivíduo sequestrado para funcionar como máquina de hemodiálise.

Se o problema é a responsabilidade da grávida, deveríamos colocar na lista dos abortos legítimos não só gestações decorrentes de estupro (hipótese contemplada pela legislação brasileira) como também as resultantes de falhas dos métodos contraceptivos (o que a lei não permite).

E, se cavoucarmos o conceito mais a fundo, verificaremos que essa noção de responsabilidade advogada pelos que se opõem ao aborto funciona melhor para elaborar narrativas moralistas do que para lidar com as complexidades do mundo real. Pelo menos em alguma medida somos responsáveis por tudo o que nos acontece. O fumante que desenvolve câncer de pulmão em alguma medida assumiu o risco de contrair a moléstia. Vamos então proibi-lo de tratar-se pelo SUS? E o alpinista que caiu da montanha? Ele também se colocou nessa situação voluntariamente. Vamos deixar de resgatá-lo e de reduzir suas fraturas? Por que cobrar a tal de responsabilidade só das grávidas e não de todos os que tomam uma decisão que em algum momento se revela errada?

Faz mais sentido, creio, pensar que algumas de nossas ações têm consequências irremediáveis, enquanto outras, não. A gravidez, felizmente, está no segundo grupo.