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Ruy Castro
Palavras em perigo
RIO DE JANEIRO - Ezra Pound, poeta e pensador, dizia que é preciso conservar a língua eficiente. Para isso, temos de cuidar bem das palavras --mantê-las alertas, lubrificadas, pulsantes, em uso. Palavras abandonadas definham, seus significados atrofiam e elas acabam morrendo. Com isso, os objetos a que se referem ficam num limbo e nossa capacidade de percebê-los vai para o beleléu.
Ocorreu-me isso outro dia ao assistir a dois filmes por acaso com a mesma palavra no título: "De Crápula a Herói" (1959), de Roberto Rosselini, e "A Lei dos Crápulas" (1958), de Jules Dassin. Ninguém mais é chamado de crápula no Brasil. Nem de bandalho, bilontra, biltre, escroque, esconso, finório, infame, ladino, manhoso, maroto, pulha, sacripanta, solerte, soez, súcio, torpe, tratante e velhaco. Não por falta de crápulas, nem de pessoas capazes de atender por cada um dos epítetos acima, muitas delas em altos escalões.
Assim como estamos perdendo palavras que definem inúmeras modalidades de ilícitos: abiscoitar, achacar, afanar, agafanhar, burlar, contrafazer, defraudar, depauperar, desfalcar, descumprir, despojar, dissipar, empalmar, engrupir, esbulhar, escamotear, espoliar, escorchar, extorquir, falsear, gatunar, iludir, ladroar, larapiar, malbaratar, pauperizar, pilhar, rapinar, safar e subtrair --para citar apenas algumas das práticas em uso corrente no Brasil.
E não podemos esquecer as palavras necessárias para garantir que, não importa o "malfeito", todos ficarão impunes: absolver, confundir, defender, desencarcerar, desconsiderar, desculpar, desdizer, desimputar, encobrir, engrolar, esconder, escusar, esquecer, eximir, inocentar, iludir, irresponsabilizar, mentir, desmentir, ocultar, omitir, perdoar, premiar e urdir.
Um dia, vamos precisar de todas essas palavras --para explicar o Brasil aos nossos netos.