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Opinião

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Anna Veronica Mautner

Inveja, um pecado capital

O autoconhecimento e o exercício de contenção funcionam para não tornar o indivíduo paralisado, escravo de invejas irrealizáveis

Quero ilustrar um paradoxo: quanto mais disponíveis são os objetos de desejo, maior o espaço para a inveja. Em uma sociedade de castas como a da Índia, por exemplo, um "intocável" nem inveja o "senhor": admira-o, odeia-o, mas, como não está aberta a possibilidade de conseguir realizar sua inveja, fica por aí.

Hoje a inveja funciona quase como um motor da ação. "Por que não tenho? Não tenho porque não quero o suficiente, com a força necessária." Sentir inveja suscita imediatamente questões relativas à justiça. Quem inveja é porque quer o que não tem. Por que uns têm e outros, não? O mundo é assim.

Houve tempo em que praticamente se nascia com os seus direitos atribuídos. Só da nobreza é que sairia um senhor feudal, por exemplo. Evoluímos muito do sistema de castas para o sistema de nobreza e de classes. Agora estamos na era da educação e da informação. Nesse mundo, a curiosidade e a perseverança podem derrubar barreiras. Para tanto, é preciso querer, isto é, invejar. Sem um "bom" querer, não se chega aos objetos desejados.

Mas a inveja pode levar ao inferno. Não conseguir o que se quer derruba a autoestima. Para suportar essa dor, lança-se mão de desculpas, algumas de verdade, outras, esfarrapadas. Por mais que uma gorda, de perna curta, pratique balé clássico, não chegará a ser uma bela sílfide. Qualquer defeito em um dos nossos cinco sentidos gera limitações e, portanto, frustrações. O autoconhecimento e o exercício de contenção funcionam para não tornar o indivíduo paralisado, escravo de invejas irrealizáveis.

E por que será que falamos tão pouco de inveja quando ela ocupa tanto espaço na nossa vida? Uma resposta plausível é que a gente prefere não pensar na nossa relação com os pecados que cometemos tão frequentemente. Não falamos de inveja, ira, gula, preguiça, soberba, avareza, luxúria. Falamos de amor.

Dinamizando a relação dos sete pecados capitais com as três virtudes --fé, esperança e caridade--, nos aproximamos muito de uma descrição do nosso mundo emocional. Tudo está na Bíblia que homens de antigamente compilaram e eternizaram por escrito, a partir da observação de si e de seus semelhantes.

Ordenar as relações interpessoais tem na escrita o seu chão firme. A possibilidade de transmitir valores com pouca dissonância entre gerações é a base da cultura de grandes populações. A linguagem escrita é berço de uma cultura mais ou menos unificada. É a saída do sonho onde as relações são pessoais para o mundo das nações, no qual mesmo os que nunca se viram nem se escutaram desfrutam das mesmas alegrias e recalques.

E onde entra a inveja? É onde a igualdade prometida pela comunicação não se realiza. A globalização nos permite desejar o que nem ao menos conhecemos. Será que podemos dizer que a inveja passou a ser um motor potente em direção à igualdade? Freud chegou ao limite ao descrever a "inveja do pênis". Eis-nos diante do impossível. O seio é da mulher e o pênis é do homem.

A tecnologia parece atender a vontade infinita que temos de ser invejados. Estou em uma festa, em um restaurante e espalho isso para meu mundo virtual. Basta ser meu amigo no Facebook para eu alcançá-lo. Posto no Instagram o que eu imagino que possa ser invejado ou pelo menos admirado. Da caverna ao Instagram e ao Facebook passamos pela ágora, pela praça e chegamos ao smartphone.


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