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Ruy Castro

Por um palmo

RIO DE JANEIRO - Foi há 60 anos, numa pequena cidade mineira. Getulio se matara naquela manhã de 24 de agosto. Dera no "Repórter Esso" pouco antes das oito, com a voz de Heron Domingues dividindo a história do Brasil em antes e depois. Ao observar os adultos à sua volta, o menino de seis anos dividiu-a de outra maneira. Havia os que choravam pela morte do líder e os que, como seu pai, pareciam cabreiros --detestavam o líder, mas não esperavam por tal desfecho.

Algumas horas depois, levado pela mão, o garoto estava ao lado de seu pai numa esquina em que se discutia a morte de Getulio. Era uma roda de homens de terno, alguns de chapéu e todos, embora da oposição, consternados --nenhum deles ostentava triunfalismo ou deboche. E, de repente, cai da sacada de um sobrado uma máquina de escrever-- a um palmo do menino.

Era uma máquina preta, alta, de mesa, talvez uma Royal. Veio de uma altura de pelo menos cinco metros e espatifou-se na calçada, teclas de aço voando para todo lado. No sobrado, morava um ardente getulista, certamente desesperado. Não sei se meu pai subiu na hora para tomar satisfações ou se alguém fez isto por ele. Investigação posterior revelou que o homem estava embriagado.

Dali a meses, com a família no Rio, meu pai soube que o Palácio do Catete, onde Getulio se matara, abrira seu quarto ao público. Levou-me com ele. Ainda me lembro dos móveis, da cama e, sobre esta, o pijama listrado, com o buraco da bala. Acho que meu pai queria se certificar de que Getulio morrera mesmo. Na saída, assinamos o livro de visitas. Se ainda existir, terá o meu nome nele, em dezembro de 1954.

Nada demais em tudo isto. Exceto que, por um palmo, eu poderia ter sido morto pelo objeto que, um dia, se tornaria minha extensão em cabeça, tronco e membros, a ponto de nem eu enxergar os limites.


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