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Memórias do seringal

Vinte e cinco anos depois da morte de Chico Mendes, a testemunha-chave do crime é reencontrada esquecida no Acre e conta sua história num livro

RICARDO MENDONÇA DE SÃO PAULO

A história do assassinato do líder seringueiro Chico Mendes, morto 25 anos atrás com um tiro no peito na porta de sua casa em Xapuri, no Acre, será recontada a partir da memória de um personagem extraordinário: o menino vaqueiro que, aos 13 anos de idade, surpreendeu o mundo ao relatar em detalhes tudo o que via e ouvia na fazenda onde o crime foi planejado.

Pobre, negro e precariamente alfabetizado, Genésio Ferreira da Silva morava e trabalhava desde os 7 anos como peão na fazenda Paraná, propriedade de Darly Alves da Silva, posteriormente condenado como mandante do crime.

Genésio foi enviado pela mãe ao local para fazer companhia a uma irmã que havia "amigado" com um dos filhos do fazendeiro, Olossi. Ajudava nas atividades rurais, convivia com os peões, os filhos, os jagunços e as esposas de Darly (ele tinha quatro na casa). Com o tempo, tornou-se íntimo da família do patrão.

Íntimo a ponto de ganhar um revólver de presente no aniversário de 12 anos, diz.

Íntimo a ponto de o fazendeiro nem se preocupar com sua proximidade nas reuniões em que acertava como seria a emboscada para eliminar Chico Mendes, o sindicalista que lutava contra seu plano de desmatar o agora notório Seringal Cachoeira.

"O Genésio já havia se naturalizado naquele ambiente", diz o jornalista Elson Martins, do Acre, amigo do rapaz e um dos que acompanham o caso desde 1988. "Ele estava sendo treinado para ser também um matador."

O livro de memórias de Genésio está sendo editado por Martins e pelo jornalista Ricardo Carvalho, dono de uma produtora de vídeo em São Paulo. Ainda sem título definido, deverá ser publicado pela editora Vladimir Herzog no início do ano que vem.

A história da produção e descoberta desta publicação também tem elementos surpreendentes.

Após denunciar seus antigos patrões --Darly e seu filho Darci Alves Ferreira, o atirador, foram condenados a 19 anos de prisão-- a vida de Genésio mudou radicalmente.

Imediatamente após o testemunho, ele foi entrevistado por jornais, rádios e emissoras de TV de diversos países. Mundialmente conhecido naquele início de 1989, foi ameaçado de morte por uma das mulheres de Darly, inconformada com a "traição".

Por questões de segurança, o garoto que queria se libertar do peso da cumplicidade acabou preso. Primeiro, numa delegacia da cidade.

Depois, com a autorização sigilosa de um juiz, foi praticamente sequestrado por Martins e pelo jornalista Zuenir Ventura, que cobria o caso para o "Jornal do Brasil", e entregue à Polícia Militar de Rio Branco, ocasião em que viajou de avião e saiu da região de Xapuri e Brasiléia pela primeira vez na vida.

Como nem o comandante da PM conseguia garantir sua segurança --descobriram uma trama para matá-lo na própria corporação--, Genésio ainda passou um período em dependências do Exército.

Sensibilizado com os riscos que o adolescente corria, Zuenir resolveu adotá-lo e levá-lo para o Rio de Janeiro.

"Um belo dia, cheguei em casa com um adolescente acreano e disse: Aqui está o mais novo membro da família'", diz o jornalista.

"Não foi bem assim, evidentemente, mas foi quase como se fosse. De repente, mulher, filhos, irmã e sobrinhas ganharam, sem direito a escolha, alguém para conviver com eles. E alguém problemático, cheio de dramas e conflitos, vindo de um terra distante e de uma cultura estranha."

Genésio ficou sob a tutela de Zuenir até os 21 anos. Voltou para o Acre no fim de 1990 para o julgamento de Darly e Darci, foi personagem do documentário americano "Amazônia em Chamas", recebeu convites para morar e estudar no exterior --promessas nunca cumpridas, diz Zuenir--, mas jamais conseguiu se adaptar à vida urbana.

Com problemas de alcoolismo, dependência que carrega desde a adolescência, trocava de escolas frequentemente. Passou por por sete ou oito cidades em vários Estados até desaparecer para Martins e Zuenir.

Só em 2004, após uma "expedição" organizada com esse objetivo, os dois jornalistas conseguiram reencontrá-lo. No mesmo Acre. Com as mesmas carências. E a mesma doença.

"Foi quando o Genésio disse pela primeira vez que estava escrevendo algumas coisas sobre sua vida", diz Martins. "Ele perguntou se poderia entregar alguma coisa para a gente ler, mas não disse que já estava tudo pronto."

No dia seguinte, lembra Martins, Genésio lhe entregou 395 páginas de caderno escolar, todas escritas à mão, já organizadas em capítulos.

É esse o material que agora irá virar seu livro.

"De todas as histórias que vivenciei profissionalmente, a do Genésio é a mais difícil e sofrida de contar", afirma Zuenir. "É melhor que ele mesmo conte."


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