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Historiador lança livro sobre Sobral Pinto

Vida do jurista é narrada por Márcio Scalercio em obra disponibilizada gratuitamente nas versões impressa e e-book

Inicialmente favorável ao golpe de 1964, advogado rompeu com o regime militar no início da ditadura

ELEONORA DE LUCENA DE SÃO PAULO

--Recebi ordens do presidente da República. Me acompanhe.

--Se o presidente da República lhe der ordens, é natural que o senhor obedeça. O senhor é major e está sujeito a isso. Eu não, eu sou paisano. Acompanho coisa nenhuma! Não seja atrevido!

--Prendam-no.

--Vocês me arrastam, porque eu não vou.

Quatro homens arrastaram o mirrado preso de 75 anos. Sobral Pinto (1893-1991) calçava chinelos, estava em mangas de camisa, com calça de andar em casa. Sem ordem judicial, foi arrancado de um quarto de hotel em Goiânia. Ficou três dias preso.

O coronel responsável por sua guarda quis discutir com ele a situação do país.

--Vamos fazer aqui uma democracia à brasileira, disse o militar.

--Tenha paciência. Não existe democracia à brasileira. Existe é peru à brasileira, disparou Sobral.

Era dezembro de 1968 e o AI-5 esmagava políticos, sindicalistas, estudantes, intelectuais, enchendo as prisões do país. Sobral, já com o acúmulo de quatro décadas de sua destacada trajetória como advogado, recebeu apoios de todo canto. O ditador Costa e Silva ordenou sua soltura.

O historiador Márcio Scalercio recupera episódios da história do célebre jurista em "Heráclito Fontoura Sobral Pinto - Toda Liberdade É Íngreme", livro que terá versões impressa e em e-book disponibilizadas gratuitamente.

Juscelino Kubitschek, Luiz Carlos Prestes, Carlos Lacerda, Miguel Arraes e Henrique Lott foram alguns dos defendidos por Sobral, que começou a se destacar atuando no caso das revoltas tenentistas, nos anos 1920.

Na época, ele era procurador criminal da República interino. Foi nomeado em 1924, quando tinha 31 anos. Católico radical, anticomunista, austero e conservador nos costumes, Sobral logo se consolidou como profissional talentoso, que não fugia de polêmicas.

Casado em 1922 com Maria José Azambuja (com quem teve sete filhos), ele se enamorou pela mulher de um amigo. De guarda-chuva em punho, atracou-se com o marido traído, que o esperava na saída da Livraria Católica, no centro do Rio, num sábado de 1928.

O episódio, que lhe trouxe dissabores também no futuro, acabou interrompendo de forma abrupta sua carreira no serviço público. Como advogado, voltou a brilhar quando foi defender Prestes e Harry Berger, comunista alemão.

Detidos nos desdobramentos da repressão ao levante de 1935, tinham condições deploráveis no cárcere. Numa argumentação que até hoje ecoa, Sobral invocou a lei de defesa dos animais para defender a vida de Berger na prisão.

"O penoso é reconhecer que ainda hoje, em pleno século 21, as autoridades de nosso país, particularmente as da esfera estadual, no que se refere à questão carcerária, ainda precisam ser confrontadas por argumentos idênticos aos de um requerimento da lavra do advogado Sobral Pinto datado de 1937", escreve Scalercio.

Na esfera pessoal, o advogado passou por apertos financeiros, e trabalhou gratuitamente em muitos casos. Certa vez, conta o livro, devolveu um cheque em branco enviado por um banqueiro que tinha sido seu cliente.

Inicialmente favorável ao golpe de 1964, rompeu com o regime militar logo quando foi decretado o AI-1. Escreveu a Castello Branco protestando contra a suspensão de direitos. Nas suas palavras, o AI-1 varria "do seio de nossa pátria não apenas o regime democrático mas também a própria dignidade do cidadão brasileiro".

Para Scalercio, talvez Sobral Pinto "tenha sido uma das primeiras pessoas do campo político conservador a perceber a natureza do golpe em curso e do que viria depois".

No decorrer do tempo, se esmerou em defender presos políticos, e também pobres ameaçados pelo poder econômico --como no caso da favela do Vidigal, no Rio, quando garantiu direito de moradia, barrando a especulação imobiliária nos anos 1970.

Aos 96 anos, Sobral fez sua última atuação em uma corte. Defendeu um primeiro-tenente punido por ter passado um cheque sem fundo.

Quando uma colega perguntou a ele de onde tirava tanta coragem, ouviu: "Não tem nada a ver com coragem, não, minha filha. Tem a ver com a capacidade de se indignar".

O livro, que será lançado na próxima terça (16) no Centro Cultural Justiça Federal, no Rio, tem um texto que pende para o formal. Sua edição, repleta de fotos e documentos, é luxuosa e impressiona. Talvez fique um pouco distante dos parâmetros austeros e franciscanos do advogado. Tem o mérito de recuperar um personagem irrequieto da história do século 20 --um "homem de absolutos", como o definiu Carlos Lacerda.


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