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Marion Strecker

De Lete

Preciso deletar o deletado, se quiser impedir que aquilo ressuscite quando menos espero e desejo

MARION STRECKER

Menina, fui cobaia de meu pai quando ele resolveu pintar as teclas das máquinas de escrever da sua escola para que os alunos aprendessem a datilografar com os dez dedos sem olhar o teclado. A gente tinha de se guiar por um cartaz na parede, que mostrava as cores das teclas e os caracteres correspondentes. Contando assim parece até complicado, mas na época não achei.

Sempre gostei de máquinas de escrever. E de fotografar. Só agora me dou conta disso: de quanto sempre gostei de máquinas!

Em 1984, quando entrei para a Redação da Folha, adotei, feliz, o computador. A principal diferença entre o teclado de uma velha máquina de escrever e um computador é a tecla DELETE. Finalmente eu não precisava datilografar novamente páginas inteiras quando queria alterar alguma coisa mas fazia questão de um resultado final sem rasuras nem emendas.

Comecei a me divertir trocando parágrafos de lugar só para ver como ficava. Depois vieram as disputas com o corretor ortográfico. Eu sempre querendo saber mais do que ele! Com o Excel a mesma coisa: faço cálculos de cabeça ou apelo a uma calculadora cada vez que desconfio dos resultados do Excel. Por incrível que pareça ele erra. Pergunte a quem usa bastante.

Se tenho nostalgia não é exatamente da máquina de escrever, mas de uma sensação ambígua.

Na Folha da minha mocidade a corrente elétrica variava muito, desligando os computadores. A tela escurecia. Ouviam-se gemidos. Suspiros. Palavrões. Todo o trabalho de horas que não fora arquivado desaparecia para sempre, enquanto o relógio marcava o nosso atraso.

Naqueles momentos, passado o desespero inicial, uma extraordinária sensação de leveza me tomava. Era afinal necessário começar de novo. Eu não estava mais presa ao que escrevera antes. E jamais o novo texto seria igual ao anterior. Por que haveria de ser?

Uma sensação de liberdade. Uma desculpa para o esquecimento. Uma oportunidade de mudança. Um renascimento mais fluente e apressado poderia surgir.

Hoje o computador se encarrega de salvar automaticamente os documentos que escrevo, eliminando a possibilidade da perda. Uma cesta de lixo virtual dá sobrevida àquilo que decidi apagar. Preciso insistir. Preciso lembrar de reapagar o já apagado. Preciso deletar o deletado, se quiser impedir que ressuscite quando menos espero e desejo.

Escrevo para lembrar. Mas também escrevo para poder esquecer. Escrevo para esvaziar a cabeça e poder dormir. Mas salvo compulsivamente e-mails, arquivos e textos para ler depois. Marco e-mails lidos como não lidos. Fantasio que armazenar é o mesmo que memorizar. Quero acreditar que guardar é o mesmo que salvar. Ilusão.

Sem tempo nem lembrança de voltar ao que foi arquivado, salvar pode ser o mesmo que matar. Água abaixo no Lete, o rio mítico do esquecimento.

Hoje, o mundo está repleto de back-ups, duplicações, replicações, arquivamento em "nuvem": essa metáfora celestial, paraíso e inferno da computação contemporânea, com suas promessas e sustos a nos lembrar eternamente que nada é infalível. Nem mesmo o fim é infalível.


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