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Zeca Camargo

Natal do Peru

Comecei a ficar impaciente: será que tinha escapado de Papai Noel para cair nos braços de Pacha Mama?

Com o improvável nome de Júlio César, nosso guia peruano apresentou-se pela manhã no segundo dia às margens do lago Titicaca, no Peru. Eu estava com um grupo de amigos e familiares que desde 2009 viaja junto para as festas de fim de ano --e tinha acabado de sair do banho, quando descobri por que o banheiro do hotel punha um banco bem ao lado do box: para você descansar depois do exercício radical que é tomar uma chuveirada a 4.000 metros de altitude.

Com o ar rarefeito (não eram poucos os que víamos jogados em sofás pelo lobby com máscaras de "ocsírreno", como eles pronunciavam "oxigênio"), o simples ato de se enxugar equivale a uma aula de natação na sua academia --e eu ainda recuperava meu fôlego na porta do hotel quando Júlio César informava a agenda do dia.

Um barco nos levaria até a ilha de Taquile para ver um pouco da cultura antiga daqueles peruanos que --não se sabe se por tradição ou por mera desculpa de faturarem em cima de turistas ávidos por "excentricidades"-- ainda se vestiam e viviam como nos tempos em que os espanhóis chegaram por lá (uma vez na ilha, percebemos que isso significava que os garotos iam para a escola vestidos como pequenos bailarinos de flamenco --o que causou uma leve dissonância cognitiva). Mas não sem antes organizarmos uma oferenda a Pacha Mama.

Minha primeira reação foi de descrédito. Quando planejava essas viagens, um dos objetivos era fugir de crenças e tradições --celebrar a temporada não com mitos, mas com pessoas reais e queridas. Será que eu tinha escapado de Papai Noel para cair nos braços de Pacha Mama? Comecei a ouvir o discurso de Júlio César sem paciência, até que percebi que todo o nosso grupo, formado por 11 pessoas, estava hipnotizado por suas histórias, que misturavam lendas locais com mensagens cósmicas.

Seguindo suas instruções, pe- gamos três folhas de coca e a dei-xamos nas águas do Titicaca, co- mo uma oração a essa divinda- de maior dos Andes --a mãe do universo. Eu mesmo mal acreditava na solenidade do ato que tinha acabado de cumprir.

No dia seguinte, sempre com Júlio César, fomos a uma espécie de santuário: um vale de pedras drásticas, onde o sol batia cinematograficamente e o silêncio só era quebrado pelas pesadas asas dos condores --os guardiões do lugar. Nosso guia falou das histórias de ancestrais do lugar, e de um possível portal para o infinito que existia ali. Sem dizer uma palavra, cada um de nós, observado pelos outros, se encaixou numa cavidade escavada numa rocha e tentou sentir que estava mais próximo das coisas fundamentais da Terra --e, com um pouco de sorte, passar para a outra dimensão.

Voltamos em silêncio para o hotel. Era dia 25 e não teve "jingle bells" nem peru na ceia daquela noite. Mas teve paz. E foi assim que, num lugar remoto do Peru, e de maneira inesperada, acabamos ficando mais próximos do que imaginávamos de uma comunhão com as coisas boas da vida --que, se eu entendo alguma coisa de Natal, é exatamente o que a gente deveria celebrar nesta época.


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