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J. P. Cuenca

A chave do mistério

História não esclarecida sobre sumiço de Agatha Christie colocou hotel da Turquia no mapa de leitores

Minha história com a suíte Agatha Christie do hotel Pera Palace não começa quando estive em Istambul no ano passado, mas 88 anos antes, em Berkshire, Inglaterra.

Na noite de 3 de dezembro de 1926, a escritora saiu de casa sozinha. No dia seguinte, um automóvel abandonado com as luzes acesas foi descoberto numa vala a alguns quilômetros dali. Era o seu carro. Ela foi dada como desaparecida.

Aos 36 anos, já era uma das autoras mais populares do mundo. O sumiço foi capa do "New York Times", e os tabloides ingleses acompanharam a investigação como se fosse um romance policial. Como o detetive belga Hercule Poirot não poderia pegar o caso, até Arthur Conan Doyle tentou ajudar --sem nenhum sucesso. Teorias simultaneamente absurdas e plausíveis, como eram os desfechos dos seus livros, foram levantadas até que 11 dias depois ela foi encontrada num hotel de luxo em Yorkshire, registrada com o nome da amante do marido e em estado de amnésia temporária e esgotamento nervoso. A rainha do crime jamais esclareceu o caso, se furtando a explicá-lo na sua autobiografia.

A história liga-se a Istambul em 1979, três anos depois da sua morte, quando a Warner lançou um filme sobre o episódio --"Agatha", com Vanessa Redgrave no papel. Numa jogada publicitária, a produtora contratou uma paranormal popular entre estrelas de Hollywood, Tamara Rand, e pediu para que ela evocasse a alma da escritora com o objetivo de solucionar o caso.

A informação que veio do além foi que a chave do mistério seria encontrada no quarto 411 do hotel Pera Palace. Ali a escritora costumava se hospedar e foi onde escreveu "Assassinato no Expresso do Oriente". No dia 9 de março de 1979, duas chamadas de longa distância foram feitas: Miss Rand orientava por telefone a busca dos produtores em Istambul ao mesmo tempo em que, num transe mediúnico em Los Angeles, via a escritora morta entrar no quarto e esconder uma chave sob o assoalho. Depois de arrebentar o chão de madeira, foi o que acabaram encontrando. Rand tinha visto Agatha usar essa chave para trancar um diário numa caixa de madeira. O espírito da escritora depois esclareceu que só com a chave na mão da Tamara Rand diria onde estava a caixa.

Isso nunca aconteceu. O gerente do hotel, Hasan Süzer, foi mais rápido que todos e colocou a chave no bolso. Em troca, pediu US$ 2 milhões (R$ 6,5 milhões) para reformar o hotel. Para piorar, em maio houve uma greve de funcionários que durou um ano e as negociações entre Warner e hotel azedaram em definitivo. A chave hoje está guardada num cofre de banco em Istambul. Não se tem notícia do diário que enfim explicaria os 11 dias subtraídos da vida pública da escritora.

Como a fantástica história colocou o hotel no mapa dos leitores de Agatha Christie em todo o mundo, há uma imitação rústica da chave num display de vidro no quarto andar. A própria suíte 411 parece uma cópia de si mesma, com uma máquina de escrever comprada num antiquário, alguns livros na estante, pesadas cortinas vermelhas e um pôster dela sobre o frigobar. Reformada e transformada em fetiche literário, é fria e irrelevante como a legião de reprodutores da autora. A única coisa autêntica ali dentro é o chão de madeira, que se curva barulhento ao caminhar.

Era o que eu pensava até começar a ter o mesmo sonho todas as noites. Nele, uma porta do armário do quarto se abria e me levava dali até um outro apartamento, na Lapa, no Rio de Janeiro, onde dessa vez quem ia desaparecendo era eu, até virar uma abstração, sem corpo ou psicologia. "O maior mistério é a ausência de mistério", uma voz me dizia no fundo de tudo.


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