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Zeca Camargo

O caminho de Samarkand

Nem toda a beleza dessa cidade do Uzbequistão foi suficiente para apagar a impressão ruim da corrupção

As recentes turbulências na Ucrânia e as terríveis consequências geopolíticas da intervenção russa em todo o conflito trouxeram memórias inesperadas de uma viagem que fiz ao Uzbequistão. Não vou fazer uma divagação sobre as implicações internacionais dos atos recentes de Putin. Só queria lembrar de um dos mais inusitados trechos da longa viagem de volta ao mundo que fiz dez anos atrás, em 2004. É a mesma escala que descrevi aqui na minha recente coluna na época do Carnaval, mas de um ângulo diferente.

Nesse projeto, o telespectador escolhia os destinos para onde eu deveria ir. Naquela semana específica, a escolha era entre o Uzbequistão e o Cazaquistão. "Borat", o imensamente popular filme de Sacha Baron Cohen sobre um repórter cazaque, só seria lançado em 2006, e talvez por puro acaso -já que a cultura de nenhum dos dois países estava muito presente no imaginário do brasileiro-, o público acabou decidindo que eu deveria fazer uma matéria no Uzbequistão.

Eu não tinha muita ideia do que iria ver por lá, mas sabia que o país tinha uma das cidades mais belas do mundo: Samarkand. Assim decidi fazer uma viagem da capital, Tachkent, até lá. Contratei o serviço de um motorista "autorizado", com preço fixo, no próprio hotel onde estava. O caminho da ida foi relativamente tranquilo -se você descontar o fato de que a duração prometida do percurso ultrapassou de longe as "duas horas e pouco" prometidas no hotel.

Meu relógio já havia marcado bem mais de 120 minutos desde a saída de Tachkent e nós continuávamos olhando uma paisagem linda, porém monotemática: planícies áridas, próximas a um deserto. Mas a excitação de chegar a Samarkand era maior do que o aborrecimento proporcionado por aquela visão, mais as tentativas inglórias de comunicação com o motorista, cujo conhecimento de inglês parecia limitado a três palavras: "money, eat, stop!" (dinheiro, comer, pare!). E, de fato, uma vez na cidade, que é realmente bela, fui capaz de esquecer todas as agruras da viagem de carro.

Parada importante da Rota da Seda, Samarkand tem construções riquíssimas. O Registan, uma grande praça onde foram construídos madraçais (escolas islâmicas), é impressionante e inesquecível. Teria ficado lá uma semana toda, mas o combinado era que voltaríamos no mesmo dia para Tachkent. E aí encontrei um obstáculo. Ao entrar no carro para retornar, o motorista me exigiu "another one hundred" -sua expressão para US$ 100 "extras".

Eu viajava com orçamento curto e não quis negociar. Sua resposta: "You don't pay, you don't go". Em bom português: não paga, não vai! Indignado, quis saber porque ele estava me cobrando a mais e ele "justificou": "Bank police". "Banco da polícia"? Vi que não tinha opção: saquei US$ 100 do bolso e, muito a contragosto, paguei o motorista. Que, de fato, "pingou" um dinheiro na mão de vários homens armados que nos paravam pela estrada. Mas eu não duvido que ele mesmo tenha ficado com sua parte...

Uma história que poderia ter ocorrido em qualquer lugar do mundo? Certamente. Até mesmo no Brasil. Mas que deixou em mim o registro de um povo desesperado -e, sim, corrupto, graças à herança soviética na Ásia Central. Uma imagem que sempre associo quando vejo uma história sobre os desrespeitos ao ser humano na atual sociedade russa.

O Uzbequistão é também o lugar onde vi uma gente linda: mulheres altas, com rudes traços mongóis, homens de rostos imprevisíveis. Mas nem toda a beleza -das pessoas e dos monumentos- foi suficiente para apagar a impressão ruim que trouxe do caminho de Samarkand.


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