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Zeca Camargo

Fé e arame farpado

Não é todo dia que você precisa ser revistado para entrar em um templo religioso, como em Kosovo

Irmã Dobrila nos esperava semi-sorridente logo na chegada do mosteiro do patriarca de Pec (pronuncia-se "Péch"), em Kosovo. Ao mesmo tempo em que estava excitada em mostrar as belezas da catedral de São Sava, ela fazia questão de expressar sua reprovação por estarmos um pouco atrasados. Mas como eu iria explicar para ela que a culpa foi da barreira de soldados da Otan que quis fazer uma revista completa no nosso carro?

Não é todo dia que você precisa ser revistado para entrar num templo religioso. Também não é todo dia que você visita uma igreja cristã em terras muçulmanas. Poucas vezes visitei regiões tão tensas, e essa escala em Kosovo --parte de uma série de reportagens que fiz para conhecer patrimônios da humanidade ameaçados-- foi uma que mais desafiou minha crença de que estamos caminhando na direção de um mundo melhor.

O conflito religioso que desestruturou os Bálcãs nos anos 90 foi um dos mais trágicos acontecimentos do final do século 20 --e as cicatrizes desse conflito ainda estão abertas para quem quiser se arriscar a vê-las de perto. Quando decidimos ir para lá, logo percebemos que não seria uma viagem simples.

Ao contatar um padre que pudesse nos guiar pelas igrejas ameaçadas, recebemos um pedido curioso: ele exigia viajar numa van com cortinas. "Você vai entender quando chegar aqui", justificou padre Damjan vagamente. Ao andar com ele pelas ruas de Prizren (outra cidade de Kosovo) percebi, pelos olhares fulminantes de toda a população, que eu estava acompanhando um "homem perigoso"! Dificilmente seríamos atacados no meio da rua, mas dentro de um carro em movimento, a figura de Damjan, vestido como um religioso ortodoxo, era um fácil alvo ambulante. Melhor garantir a privacidade (e a vida) com cortinas...

Irmã Dobrila, padre Damjan, um jovem jornalista chamado Lazar --todos os cristãos que encontrei em Kosovo viviam sob uma pressão constante pelo simples fato de ter uma religião diferente daqueles que ganharam o conflito naquele canto do mundo. Eles fazem parte da população sérvia "deixada para trás": não foram para a Sérvia, e ficaram ilhados na sua fé.

Para o simples ato de ir à missa, Lazar tinha que ir todos os domingos com sua família sempre escoltado --sem saber como explicar para sua irmã pequena porque eles não poderiam interromper o trajeto para comprar um pão doce. E ao chegar à igreja, com seus muros protegidos, Lazar torcia para a menina não perguntar o que significava o símbolo de um revólver dentro de um círculo, cortado por um traço vermelho --estampado logo na entrada.

O lembrete de que as armas eram proibidas, num templo de oração, era só mais um detalhe assombroso dessa viagem que só não foi mais incômoda porque a beleza dos lugares que visitávamos nos fazia esquecer que, acima de todos os conflitos, existe a fé.

Tentei não julgar nenhum lado --para cada massacre kosovar é possível achar uma monstruosa contrapartida sérvia na época do conflito. Independentemente das minhas crenças, respeito toda manifestação religiosa. Mas mesmo hoje, seis anos depois de ter estado lá, a memória que não se apaga é a das torres cristãs rasgadas pelo feio retorcido do arame farpado.


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