Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Turismo

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Zeca Camargo

São Tomé e um príncipe

Um príncipe de verdade, como Manel, não hesita em querer conhecer todos os limites do seu domínio

O nome dele era Manel. Assim mesmo, sem o "u". Tinha 20 anos, duas namoradas --e não usava camisinha com nenhuma delas. Essas informações descobri nos dois primeiros minutos de conversa, no terceiro dia em que explorava um dos lugares mais bonitos que já visitei: São Tomé e Príncipe, na África.

Quer dizer, a ilha do Príncipe mesmo, não visitei. Já foi difícil chegar a São Tomé --vou poupar vo- cê de contar da minha escala em Libreville (Gabão), saindo de Paris... A distância entre as duas ilhas principais que compõem esse pe-queno país é cerca de 140 km --que naquele canto do oceano Atlânti- co, pelo menos daquela vez, me parecia intransponível.

Mas, digamos que São Tomé já oferecia aventura suficiente para que eu aproveitasse bem a viagem --uma das escalas mais fascinantes de uma grande reportagem que fiz nos lugares do mundo onde ainda se fala português (era o ano de 1998...). Na época em que visitei, o clima era extremamente úmido --e a chuva era parte da rotina. O que acabou sendo uma dádiva.

Era graças a ela que as fazendas de cacau --especialmente a que conheci, de um casal luso-brasileiro, onde tomei talvez a melhor cachaça da minha vida-- brilhavam verdes e amarelas em plena tarde.

Era o aguaceiro que derrubava o cacau maduro e que inspirava as crianças e adolescentes (que me contavam que aprendiam a namorar com as novelas brasileiras transmitidas pela TV de lá) a sair no estio pegando a fruta para mascar "crua" --uma experiência que não recomendo aos amantes do chocolate.

E também foi um toró que me fez procurar abrigo numa construção abandonada: um enorme cinema construído num deslocado e anacrônico estilo art déco.

Dentro de suas salas de pé direto altíssimo, as poucas poltronas que sobravam conservavam um certo glamour. O último filme em cartaz, porém, havia passado há mais de uma década e o único memento de que ali um dia as pessoas foram hipnotizadas pela grande tela era um punhado de retalhos de velhos celuloides largados pelo chão.

Naquele fim de tarde, sob uma chuva então fina, voltei ao hotel da principal vila de São Tomé, e conheci Manel --que sempre dava uma ronda ali pela varanda. Viajando pela África lusófona, já estava acostumado ao português com aquele sotaque "abééérto". Mas a conversa de Manel tinha uma música especial --ampliada pela curiosidade que ele demonstrava por estar conhecendo um jornalista. Era ele que me entrevistava. Queria saber do Brasil, do mundo, das minhas andanças.

Fiquei lá ainda mais dois dias --e o final da tarde era sempre esticado com as conversas de Manel. Quando eu disse que ia embora, foi um choque para ele. Talvez também para mim, que já estava acostumado àquela prosa tão deliciosa e atemporal.

Na manhã seguinte, quando saía para o aeroporto, Manel trouxe uma das namoradas para me conhecer --e um presente. Um mamão ainda verde. "Para a viagem", me explicou com a simplicidade de quem faz um gesto nobre sem se dar conta. Poucas atitudes de pessoas que conheci em viagens me deixaram tão emocionado. Se pudesse, embarcaria Manel comigo ali mesmo. E daria a ele um passaporte para o mundo.

Imagino que Manel esteja lá até hoje --sabe-se lá com quantas namoradas! Se experimentou algo do mundo, não estou seguro. Mas tenho certeza de que nunca parou de sonhar com isso. Afinal, um príncipe de verdade não hesita muito em querer conhecer todos os limites do seu domínio...


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página