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Coronavírus, o debate científico Coronavírus

Como funciona a ciência (e quais são os riscos dos pré-prints na pandemia)

Plataformas de publicação de pré-prints trazem agilidade, mas não têm avaliação criteriosa

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Daniel Bargieri Fabio T. M. Costa Roberto R. Moraes Barros

A pandemia da Covid-19 colocou a ciência em evidência. Termos desconhecidos pela população até há pouco tempo, como imunidade de rebanho, R0 ou supressão de transmissão, tornaram-se comuns em redes sociais. É um dos poucos pontos positivos do período que vivemos. A sociedade voltou suas atenções à ciência, passou a ler as páginas sobre ciência nos jornais e a compartilhar notícias científicas.

Valorização da pesquisa científica é sinal de amadurecimento social, mas, como tudo na vida, há o bônus e o ônus. O lado ruim da coisa, neste caso, está ligado ao fato de a sociedade estar sendo bombardeada com notícias científicas sem necessariamente estar preparada para interpretá-las com ponderação. Para isso, é preciso entender o básico de como funciona a ciência aqui no Brasil e no mundo.

O lado bom é que o Brasil segue padrões rigorosos, aos moldes internacionais, de distribuir fundos aos pesquisadores, bem como de classificar o histórico científico de um pesquisador. Todos os cientistas depositam seu histórico profissional em uma plataforma nacional denominada Plataforma Lattes. Nela, os cientistas adicionam suas publicações, os financiamentos para pesquisa que coordenam e coordenaram e todo o histórico de atuação acadêmica. Também são adicionados índices matemáticos, como número de citações dos artigos publicados —ou seja, se a comunidade científica está lendo e mencionando os trabalhos do pesquisador.

Existe, também, uma métrica de qualidade de revistas científicas, chamada fator de impacto. Revistas de longa tradição científica, com alto fator de impacto, em geral possuem critérios rigorosos para publicação de um estudo científico.

Para garantir o rigor científico, o processo de descoberta científica é intrinsicamente moroso. O cientista faz experimentos ou analisa dados para responder a uma pergunta, seja ela inovadora ou incremental. Cada experimento gera resultados que podem trazer novas perguntas ou revelar uma descoberta —por exemplo, que uma droga tem ação contra um germe em experimentos laboratoriais.

Normalmente, mais experimentos são realizados para se confirmar a observação. Se num experimento o cientista observa que um certo germe morre em contato com uma droga, é normal ele realizar outros experimentos para aprofundar seus estudos tentando entender, por exemplo, os mecanismos pelos quais a droga age, e se a atividade é específica contra o germe, sem atingir nosso corpo. Drogas com mecanismos de ação que atingem não só o alvo desejado mas também o nosso corpo nos fazem mal — são os chamados efeitos colaterais.

Após diversas análises com provas e contraprovas, o cientista pode decidir compartilhar seus achados com a comunidade científica

Para compartilhar esses dados, o cientista escreve um trabalho científico, que chamamos de “paper”. No paper, que deve ser essencialmente técnico, o cientista deve explicar os motivos que o levaram a testar a droga D contra o germe G, detalhar os métodos que ele usou para os testes, apresentar os resultados e discutir os impactos das conclusões na área de estudo.

Dependendo da área de estudo, o processo todo pode demorar anos.

Como um cientista publica seus trabalhos?

A comunidade científica criou mecanismos para que todo paper publicado tenha sido, antes, minuciosamente avaliado por outros cientistas revisores da mesma área: é a chamada revisão por pares.

Os revisores, geralmente entre 2 e 4 cientistas, anonimamente têm a missão de avaliar se o trabalho foi bem conduzido. São os comentários deles que ajudam os editores das revistas científicas na decisão sobre publicar ou não o trabalho. É interessante ressaltar que revistas científicas sérias são transparentes sobre o histórico de datas de um artigo científico (quando foi submetido para publicação, tempo de revisão e quando foi aceito pelo editor). Mecanismos muito similares, normalmente com mais etapas de avaliação e às vezes com mais revisores, são usados para aprovar um financiamento de pesquisa.

O processo de revisão de um paper pode demorar meses, pois os revisores podem solicitar mais dados experimentais, por exemplo. É comum também os revisores rejeitarem o trabalho, indicando que ele carece de rigor científico.

A consolidação de uma nova descoberta leva ainda mais tempo. Mesmo conclusões amparadas por resultados convincentes só serão consideradas como conhecimento consolidado pela comunidade científica depois de serem reproduzidas e confirmadas por outros grupos científicos.

Os pré-prints

Procurando acelerar o processo de publicação de dados científicos, o que no momento atual é bastante conveniente, há alguns anos foi proposto um novo modelo de publicação chamado de pré-print. Nas plataformas online de publicação de pré-prints, os trabalhos são disponibilizados sem nenhuma revisão por pares, quase que diretamente pelos autores. Há apenas checagem de formato e de possíveis plágios.

A vantagem óbvia trazida pelas plataformas de publicação de pré-prints é a agilidade com que achados científicos podem ser compartilhados na comunidade científica. A desvantagem é que os trabalhos publicados como pré-print não passam por nenhuma avaliação criteriosa.

Geralmente, trabalhos publicados como pré-prints são, ao mesmo tempo, submetidos a revistas científicas para publicação após a revisão por pares. O problema surge quando trabalhos publicados como pré-prints são amplamente divulgados e compartilhados por quem não tem o treinamento para avaliar o rigor científico das publicações. Assim, apesar de acelerar o compartilhamento de informações científicas entre cientistas, os pré-prints, quando carecem de rigor científico, podem contribuir para a disseminação de dados oriundos de metodologias experimentais sem lastro científico sólido ou ainda de conclusões com viés, ou seja, que podem ter sido feitas por má interpretação dos dados.

É bom que o acesso à informação científica seja democratizado. O amadurecimento científico passa necessariamente pela exposição ao modo como a ciência compartilha dados, conclusões e opiniões.

Entretanto, é importante ter em mente a fonte das informações para saber o quão preliminares elas são. Pré-print? Revista científica? Qual revista? Tem tradição? Houve revisão por pares? Há transparência? Qual o histórico do pesquisador principal? É filiado a qual instituição?

A valorização do método científico e da ciência como instituição capaz de achar as soluções para os males que enfrentamos, sejam eles biológicos, econômicos ou sociais, é um avanço que deve ser não só celebrado, mas também perseguido. Os países que mantiverem massa crítica de cientistas bem formados e população com educação sobre o método científico estarão sempre mais bem preparados para enfrentar adversidades, pois o método científico segue sendo única maneira da sociedade avançar.

É importante que a sociedade entenda como funciona esse método e confie nos seus cientistas e nas suas instituições de pesquisa para produzir e interpretar resultados publicados.

Daniel Bargieri

Professor e pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas da USP

Fabio T. M. Costa

Professor titular do Instituto de Biologia da Unicamp e membro da coordenação de área (Ciências da Saúde) da Fapesp

Roberto R. Moraes Barros

Professor e pesquisador da Escola Paulista de Medicina (Unifesp)

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