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Jornalista especializada em diversidade, escreve sobre quem vive às margens nada plácidas do Ipiranga, da América Latina e de outras paragens

Descrição de chapéu África

"Rainha Cleópatra" expõe o lugar de estrangeiridade da soberana do Egito

Série abre leque de possibilidades e propõe um 'e se?', não um ponto final

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A pirâmide não pariu um rato, pariu um alfinete. Aos 15 minutos do primeiro episódio de "Rainha Cleópatra" —docudrama (guarde esse substantivo) que vem causando um barulho imenso por caracterizar a soberana do Egito como uma mulher negra—, os especialistas consultados afirmam, textualmente: "Não sabemos quem foi a mãe de Cleópatra"; "não sabemos sua ascendência racial exata"; e, se a mãe fosse egípcia, "os antigos egípcios tinham uma grande variedade de cor de pele, do negro ao marrom claro". Por fim, um deles diz: "Cleópatra é quase como um camaleão, todos podem imaginá-la à sua maneira".

Certamente isso decepciona muitos, porque transforma todo o Fla x Flu das redes sociais no mais absoluto nada, em miragem.

"O Egito está na África, mas nunca foi um local homogêneo. Há diferenças claras entre o norte, no Delta, próximo ao Mediterrâneo, o vale do Nilo e o sul, onde fica o Sudão. Mais ainda, essas regiões foram ocupadas por diversos povos ao longo de milhares de anos", pontua a egiptóloga Thais Rocha da Silva. "É preciso cautela, principalmente a compreensão das fontes egípcias, para não projetar as pautas do mundo contemporâneo no mundo antigo."

A série da Netflix apresenta um olhar afrocentrado, sem negar sua condição de docudrama —olha ele aí de novo: trata-se de um gênero híbrido que mistura ficção ao relato de acontecimentos reais. É uma obra audiovisual, não um estudo acadêmico. Oferece uma possibilidade, a partir do desconhecimento de como Cleópatra era fisicamente, de que a pensemos como uma figura, aos olhos atuais, desafiadora em amplo espectro.

Claro que a parte do trailer que mais incendiou a "polêmica" é quando uma das entrevistadas (Shelley Haley, presidente da Sociedade de Estudos Clássicos nos Estados Unidos) conta que a avó dela dizia: "Não importa o que te contem na escola, Cleópatra era negra". Talvez poucos tenham notado que ela falou que era a avó dela dizendo, não ela.

Cena da primeira temporada da série Rainha Cleópatra - Netflix

"Cada época terá sua Cleópatra. A personagem se tornou para o mundo ocidental um universo de possibilidades: ela é para alguns o sinônimo da mulher empoderada, emancipada, quase uma protagonista do feminismo; para outros, o perigo, a ameaça", comenta Rocha. "O protagonismo da rainha serve de alegoria para nós, como afirma Ella Shohat, para pensar sexualidade, gênero, raça e nação."

O velho e ruim "não vi e não gostei" turbinado pela ansiedade da arena virtual ofusca um debate interessante, apesar de a série trazer pouca ou nenhuma novidade sobre uma das figuras mais fascinantes da história.

E é que o diferencial a destacar nessa abordagem não é a cor da pele de Cleópatra, seja a imaginária, a provável ou a desejada (todas elas ao gosto do freguês), senão o seu permanente lugar de estrangeiridade.

Cleópatra foi uma soberana culturalmente estrangeira no Egito (não, ninguém nega sua linhagem macedônica de origem grega), mas que aprendeu o idioma local; uma mulher que teve que se defender de alheios e próprios em permanente modo de sobrevivência; uma outsider que influenciou de forma decisiva a política romana muito mais do que se esperava.

Cena de 'Rainha Cleópatra', série da Netflix - Divulgação

"Sabe-se pouco sobre a vida de Cleópatra 7ª antes de se tornar rainha. Ela sabia ler e falar pelo menos nove línguas e demonstrou habilidade política para negociar a posição do Egito no período —é preciso um esforço nosso aqui em desromantizar as alianças com Júlio César e Marco Antônio", afirma Rocha. "É necessário lembrar também que os romanos estavam em guerra com o Egito. Muitos textos romanos sobre Cleópatra fizeram parte da campanha política de Otávio que mostrava o Egito, representado por Cleópatra, como uma terra sem moral. O próprio Marco Antônio foi vítima dessa campanha negativa associada à rainha."

O exercício claramente hipotético da negritude de Cleópatra é uma alegoria que funciona como reforço da estranheza e do incômodo que ela, sim, causou nas esferas em que incidiu. "Rainha Cleópatra" abre o leque de possibilidades interpretativas sem renegar as evidências materiais. Propõe um "e se?", e não um ponto final. O resto é areia nos olhos.

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