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A Bíblia justifica a guerra em Gaza?

A história e a arqueologia têm más notícias para quem pensa dessa forma

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Marcelo Rede

É doutor pela Universidade de Paris 1-Panthéon-Sorbonne e professor de história antiga da USP

Depois de nove meses de guerra em Gaza, ainda não há no horizonte uma perspectiva de paz. Desde o início do conflito, muitas lideranças evangélicas brasileiras vêm defendendo a retaliação massiva de Israel contra o território palestino, apoiadas em uma visão fundamentalista da Bíblia.

Um dos argumentos bíblicos para justificar a ocupação de Gaza foi a suposta inclusão desse território em um grande reino unificado de Salomão, conforme está escrito no Primeiro Livro de Reis ou no Segundo Livro das Crônicas. No entanto, a história e a arqueologia têm más notícias para quem pensa dessa forma.

A Bíblia apresenta Salomão como um rei sábio, extremamente poderoso e rico, dono de um harém de centenas de mulheres e construtor do Templo de Jerusalém. Seus domínios se estendiam desde o atual Iraque até o Egito, e vários reis vizinhos lhe pagavam pesados tributos. A partir daí, certa leitura teológica da Bíblia estabeleceu uma continuidade inquestionável entre os "tempos bíblicos" e o moderno Estado de Israel, legitimando sua ação em Gaza.

Uma explosão ocorre após um ataque aéreo israelense em um prédio residencial, em meio ao conflito entre Israel e o Hamas, em Nuseirat, na região central da Faixa de Gaza - Reuters

Mas um reino unificado de Davi ou Salomão como descrito na Bíblia jamais existiu. A opulência do reino de Salomão é uma miragem criada pelos autores bíblicos. Nas últimas décadas, a arqueologia tem demonstrado que as construções monumentais antes atribuídas a Salomão foram realizadas mais tarde, pelos reis da dinastia de Omri, do reino de Israel.

Na Antiguidade, Gaza nunca pertenceu aos reinos de Israel ou de Judá. Durante o segundo milênio a.C., o território esteve sob influência ou controle direto dos egípcios. A partir de 1.200 a.C., com a chegada dos chamados "Povos do Mar", Gaza tornou-se um dos principais centros dos filisteus, ao lado de Ascalon, Ashdod, Gath e Ekron.

Por que, então, os redatores bíblicos criaram as narrativas lendárias de uma Idade do Ouro de Salomão?
Dois momentos distintos explicam o processo de escrita desses textos. Quando o reino de Israel foi destruído pelos assírios, o reino de Judá passou a ocupar o vazio, crescendo economicamente e se fortalecendo politicamente. Além disso, Judá buscou reinventar as tradições sobre o seu passado, criando algumas das narrativas que acabariam compondo a Bíblia que conhecemos. A invenção de uma monarquia unificada com sede em Jerusalém e seu templo esteve no centro desse novo discurso.

O segundo momento ocorreu a partir do exílio babilônico. Os habitantes do extinto reino de Judá estavam agora dispersos nos domínios do novo senhor da região, o império Persa. Nesse quadro, os redatores finais da Bíblia reforçaram a criação imaginária de um glorioso reino de Salomão. A intenção foi, sobretudo, criar a memória de um passado a ser compartilhada por uma comunidade em crise, dividida entre vários interesses e que procurava recriar sua identidade coletiva.

Muitos dos textos bíblicos foram escritos sob a perspectiva do trauma exílico, visando estabelecer um projeto de retorno à terra prometida. Não são descrições objetivas da história tal qual ela aconteceu, mas narrativas muito tardias que buscavam criar um passado mítico.

Entender historicamente a natureza desses textos nos oferece uma visão alternativa para escapar da armadilha criada por uma interpretação que considera como verdade divina e inquestionável o que a Bíblia diz literalmente. Oferece também a oportunidade para repensar a força do uso de textos escritos há mais de dois mil anos para justificar as ações políticas de pessoas, grupos ou Estados no mundo de hoje.

Sem este esforço será difícil compreender por que tantos movimentos cristãos se alinharam incondicionalmente a um Estado não-cristão no cenário internacional ou por que as bandeiras de Israel povoaram as manifestações bolsonaristas e as marchas evangélicas.

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