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Daniel Guanaes

Evangélico pode ser traficante?

A conversão a um novo tipo de vida é mais importante do que a adesão ao seu grupo social

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Daniel Guanaes

PhD em teologia pela Universidade de Aberdeen, é pastor na Igreja Presbiteriana do Recreio, no Rio de Janeiro, e psicólogo

Na década de 1990, houve uma onda de cultos evangélicos em que ex-traficantes davam o seu testemunho. Estive em alguns deles. A história de pessoas que tinham elo com o tráfico me impactava. Os enredos divergiam, mas o desfecho era sempre o mesmo. A conversão religiosa levava aqueles homens a abandonarem o tráfico e a seguirem uma nova vida.

No início deste mês, o chefe de uma facção no Rio de Janeiro determinou o fechamento de igrejas católicas numa região chamada Complexo de Israel. Segundo moradores, o traficante é evangélico. Não consigo evitar me lembrar daqueles cultos da década de 1990. Antes, porque convertido, o sujeito virava ex-traficante. Hoje, apesar de traficante, vira evangélico.

Fiéis evangélicos oram em um culto, alguns segurando Bíblias - Pixabay

Como líder religioso, o tema me sensibiliza. Há alguns anos acompanho as contribuições acadêmicas sobre essa relação entre a fé evangélica e o tráfico. O trabalho das pesquisadoras Christina Vital e Viviane Costa, por exemplo, me ajuda a entender o fenômeno narcorreligioso na capital carioca. Mas minha angústia é pastoral. Como uma pessoa pode estar na igreja e no tráfico?

Cada um escolhe no que acreditar. Nesse sentido, o traficante pode ser evangélico. A pergunta é se um evangélico pode ser traficante. Não consigo imaginar uma pessoa em um aconselhamento pastoral me dizendo que quer entrar para o tráfico. Em quase duas décadas como pastor, nunca passei por isso.

Apesar de plural, o campo evangélico sempre esteve vinculado a um tipo de moralidade oposta ao que o tráfico representa. A maioria dos evangélicos julga incompatível a ideia de um adepto da sua religião ser traficante. Mesmo assim, aumentam episódios como esse. O que explica esse fenômeno?

O crescimento evangélico na sociedade brasileira é acelerado. Sua expansão não passa apenas pela experiência da conversão. Muitas pessoas se tornam evangélicas por adesão. Não é detalhe. No imaginário religioso, a conversão é representativa de mudança de vida. É mais do que se identificar com um grupo, ou estar junto dele. Tem a ver com permitir que a vida seja moldada a partir da sua nova crença.

Quando um traficante se declara evangélico, a primeira pergunta entre os fiéis é se ele abandonou o tráfico. Essa é a prova de que ele se converteu. Na Bíblia, seria como Saulo de Tarso virando o apóstolo Paulo. Ou como Zaqueu, um coletor de impostos corrupto dizendo, depois de se encontrar com Jesus, que restituiria as pessoas que lesou.

Situações como essa podem gerar um desgaste na imagem pública do segmento evangélico, mas não costumam ter tanta repercussão nas igrejas, nem entre os fiéis. Quando essas notícias aparecem nos grupos de WhatsApp ou nas rodas de conversa, são ridicularizadas e logo se perdem. A fala mais comum é: claro que não é evangélico!

Tudo indica que esse fenômeno narcorreligioso seguirá existindo. Não há na religião evangélica uma fiscalização que decide o que ou quem faz parte dela. Ainda que não frequente uma igreja, se um traficante se diz evangélico, quem o proibirá? Seria o mesmo caso ele se apresentasse como praticante de qualquer outra religião. Qualquer tarefa de controle nesse sentido é ineficaz.

Seja como for, não me acostumarei com a notícia de um evangélico vinculado ao tráfico. Sinto falta dos testemunhos dos traficantes que abandonavam o tipo de vida que levavam quando passavam a frequentar a igreja. A conversão a um novo tipo de vida é mais importante do que a adesão ao seu grupo social. Não é possível separar uma religião de sua ética.

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