Descrição de chapéu

Um vampiro lê a bíblia dos crentes

Tradução do livro sagrado desde sempre usado por evangélicos exerce influência até em obras inusitadas

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Valdinei Ferreira

Doutor em sociologia pela USP, pastor presbiteriano independente e criador do Mapacentrante (iniciativa na área da saúde mental)

Explico o título estranho: a Bíblia é uma só, mas evangélicos no Brasil desde sempre utilizam a tradução feita por João Ferreira de Almeida, um português convertido ao Protestantismo nos idos de 1600. Foi obra dele a primeira tradução da Bíblia para a língua de Camões e Pessoa.

Talvez o leitor esteja se perguntando sobre o Vampiro: quem seria ele? Não se trata da Saga Crepúsculo, aquela com vampirinhos numa eterna adolescência. O vampiro que lê a Bíblia bateu 99 anos no dia 14 de junho e vive em Curitiba, chama-se Dalton Trevisan, apelidado de Vampiro de Curitiba, título de seu livro publicado em 1965. Ele não se deixa fotografar e não dá entrevistas. O que só fez aumentar o mistério em torno dele ao longo das décadas.

A imagem mostra um livro grosso com capa preta descansando sobre uma cama. O livro está fechado e parece ter muitas páginas. Ao fundo, há um travesseiro com fronha azul.
Bíbilia em cama de um interno em comunidade terapeutica de São Paulo - Eduardo Knapp - 9.mai.23/Folhapress

Nos primeiros livros que li, do Vampiro, comecei a notar algo que me soava familiar nos personagens, nos contos e no estilo da escrita. Sou leitor da Bíblia Almeida desde o início da minha adolescência. Já os contos de Dalton, descobri no começo da juventude. A familiaridade com os personagens descritos nos contos, pensava, vinha da memória dos programas policiais, transmitidos pelo rádio, que escutava junto com meus avós no interior do Paraná. Porém, em alguns contos eu tropeçava com frases feitas a partir de versículos da Bíblia Almeida, por exemplo, em "O Grande Deflorador", Maria lava os pés do velho e passa a enxugá-los com os cabelos. Como não lembrar de Maria, no evangelho de João, enxugando os pés de Jesus com seus cabelos.

No "Vampiro de Curitiba", Dalton escreve: "Olhem as filhas da cidade, como elas crescem: não trabalham nem fiam, bem que estão gordinhas"; na versão Almeida se diz: "Olhai os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam" (Mateus 6.28).

Com o passar dos anos fui entendendo que as semelhanças entre os contos escritos pelo Vampiro de Curitiba e as histórias bíblicas iam muito além da reescrita proposital de versículos da Bíblia Almeida num conto ou outro. A Bíblia Sagrada, livro tido pelos cristãos como exemplar, e as "Novelas Nada Exemplares" do Dalton registram sem pudor as histórias de erotismo, luxúria, prostituição, violência e abandono vividas por seus personagens.

Como não encontrar semelhanças entre o mítico rei Davi, que já velhinho, manda trazer uma moça virgem para dividir a cama com ele e esquentá-lo, e o velho doutor que fecha a porta do escritório e sai desesperado pelas ruas do centro de Curitiba em busca de uma jovem prostituta para esquentá-lo na cama de algum quarto de pensão. Claro que nosso respeitável doutor, depois de recomposto, irá ainda a algum compromisso da alta sociedade curitibana.

Soube que um dos poucos lugares que o Vampiro de Curitiba frequentava era a livraria do Chain, nas imediações da Universidade Federal do Paraná. Lá estive algumas vezes, sempre na esperança de encontrá-lo e levá-lo a confessar sua inspiração bíblica para os personagens dos contos. Nunca o vi por lá, mas no Chain encontrei uma das poucas entrevistas dadas por Dalton e nela estava dito por ele: "o estilo da língua portuguesa encontrei em Machado de Assis e na Bíblia João Ferreira de Almeida". Eis a confissão que eu buscava.

Tendo o Vampiro confessado ser um leitor da Bíblia dos crentes, já não lhe perguntaria mais isso. Mas agora que ele bateu nos 99 anos de idade, lhe perguntaria: é verdade que ao homem "o caminho se revela na hora da morte?" ("Cemitério de Elefantes"). Que pergunta boba, afinal, vampiros não morrem nunca. Pelo menos o vampiro que mora em Curitiba.

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