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Chinesas confrontam costume que nega direitos à terra após casamento

Estado determina compensações iguais, mas há regiões onde aquelas que escolhem casar fora da aldeia são excluídas

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Vivian Wang
Guangdong (China) | The New York Times

As mulheres vieram de diferentes aldeias, convergindo do lado de fora do escritório local de assuntos rurais logo após as 10h. Uma delas havia tirado a manhã de folga de seu trabalho vendendo rolos de arroz. Outra era operadora de turismo. E outra era uma recém-aposentada.

O grupo, nove ao todo, verificou seus documentos novamente e então entrou com determinação. Em um escritório mal iluminado, elas encurralaram três funcionários e exigiram saber por que haviam sido excluídas dos pagamentos do Estado, no valor de dezenas de milhares de dólares, que deveriam ser destinados a cada morador da aldeia.

"Eu tinha esses direitos desde o nascimento. Por que de repente os perdi?", perguntou uma mulher.

Essa era a pergunta que unia essas mulheres na província de Guangdong, no sul da China. Elas estavam se juntando a um número crescente de mulheres rurais, em todo o país, que estão se unindo para confrontar um costume antigo de negar a elas direitos à terra —tudo por causa de com quem elas haviam se casado.

A eleição de um comité de aldeia na província de Guangdong, na China, em 31 de março de 2014 - The New York Times

Em grande parte da China rural, se uma mulher casa com alguém de fora de sua aldeia, ela se torna uma "mulher casada fora". Para a aldeia, ela não é mais considerada membro, mesmo que continue vivendo lá.

Isso significa que a assembleia da aldeia —um órgão de tomada de decisões tecnicamente aberto a todos os adultos, mas geralmente dominado por homens— pode negar a ela benefícios patrocinados pela aldeia, como seguro de saúde, bem como dinheiro que é concedido aos moradores quando o Estado assume suas terras (um homem permanece elegível, não importa com quem ele se case).

Agora, as mulheres estão revidando, em um raro ponto positivo para os direitos das mulheres e a sociedade civil. Elas estão entrando com processos judiciais e petições aos funcionários, energizadas pela convicção de que deveriam ser tratadas de forma mais justa e pelo reconhecimento crescente de seus direitos pelas autoridades.

Ao fazer isso, elas desafiam séculos de tradição que definiram as mulheres como apêndices dos homens: seus pais antes do casamento, seus maridos depois. Essa visão persistiu mesmo quando o país se modernizou rapidamente, e as mulheres foram para a escola e, às vezes, até se tornaram as provedoras de suas famílias.

Elas também estão expondo uma lacuna entre as palavras do Partido Comunista no poder e suas ações. Muitos tribunais, controlados pelo partido, recusam-se a aceitar os processos judiciais das mulheres. Mesmo quando elas obtêm decisões favoráveis, os funcionários locais se recusam a implementá-las, temendo distúrbios sociais. Mulheres têm sido assediadas, espancadas ou detidas por buscarem seus direitos nesses casos.

Pouco depois de um colega e eu encontrarmos as mulheres de Guangdong e as acompanharmos ao escritório de assuntos rurais, várias delas nos disseram que foram contatadas por funcionários ou não poderiam mais participar deste artigo. O New York Times está identificando as mulheres apenas por seus sobrenomes e omitindo sua localização exata por motivos de segurança.

FORTUNAS PERDIDAS PARA A DESIGUALDADE

As mulheres chinesas há muito sofrem discriminação, mas as implicações financeiras dessa desigualdade ficaram mais evidentes após a expansão acelerada da economia chinesa.

À medida que a China adotava reformas de mercado a partir dos anos 1980, o Estado começou a tomar terras rurais para fábricas, ferrovias e centros comerciais. Em troca, os moradores recebiam compensações, muitas vezes na forma de novos apartamentos ou certificados que lhes conferiam direito a dividendos do uso futuro das terras.

O Estado determinou que as mulheres membros da aldeia recebessem compensações iguais. Mas deixou a definição de membros para as assembleias de aldeia lideradas por homens. E para muitas dessas assembleias, um grupo não se qualificava: as mulheres casadas fora.

O número de mulheres privadas de direitos à terra aumentou com a mobilidade populacional e casamentos entre províncias. Pesquisas indicam que até 80% das mulheres rurais não estão listadas nos documentos de terra, dificultando a defesa de suas reivindicações em disputas.

Por décadas, mulheres tiveram poucos recursos e aceitaram sua privação como normal. No entanto, com mais educação e conexões, há sinais de resistência. Decisões judiciais envolvendo "mulheres casadas fora" aumentaram para quase 5.000 cinco anos atrás, ante 450 em 2013.

CONSCIÊNCIA CRESCENTE

Quando cheguei, várias mulheres casadas estavam se reunindo em uma das salas de estar para planejar sua visita ao escritório de assuntos rurais no dia seguinte. Uma das participantes era uma mulher sobrenome Ma, cuja jardineira e rabo de cavalo lhe davam um ar de juventude, embora estivesse aposentada.

Ela comprou uma cópia do código civil da China para se educar. Ligou e visitou repetidamente os escritórios das autoridades, embora elas se recusassem a aceitar seu caso. "Se eu esperasse até que outros se manifestassem, não teria nada", disse ela.

Gradualmente mais mulheres começaram a tomar medidas semelhantes —não apenas em Guangdong, mas em toda a China. Às vezes, encontravam funcionários simpáticos e algumas ganhavam seus casos.

Conforme a notícia se espalhava, Ma e várias dezenas de outras mulheres próximas se encontraram por meio do boca a boca. Elas não tinham líder e se reuniam esporadicamente. Elas representavam uma fração das milhares de mulheres que tiveram os direitos à terra negados em suas aldeias.

Ainda assim, o aumento de seus números colocou pressão sobre os tribunais locais. O caso de Ma foi aceito em 2020, assim como os de outras mulheres.

Órgãos do Estado alegam não poder forçar assembleias a cumprir devido à autogovernança das aldeias e direitos democráticos nominais na lei chinesa, embora o partido mantenha o controle. Mulheres de Guangdong que protestaram em frente a escritórios das autoridades foram fisicamente afastadas.

A própria lei tem brechas. Um órgão legal de alto escalão incentivou os promotores a proteger os direitos das mulheres que se casam fora de suas aldeias, em conformidade com as garantias constitucionais de igualdade de gênero.

Mas em junho, a China aprovou uma lei reafirmando que as assembleias de aldeia podem continuar a decidir quem conta como membro de seus coletivos de aldeia e, portanto, é elegível para direitos de terra. Defensoras dos direitos das mulheres haviam pedido que a lei afirmasse definitivamente que as mulheres são membros, independentemente de seu estado civil.

Como as mulheres casadas fora ainda são um grupo relativamente pequeno, o Estado tem pouco incentivo para arriscar irritar a maioria da aldeia, que também inclui mulheres que se casaram com outros aldeões e, portanto, permanecem elegíveis para benefícios, disse Lin Lixia, advogada em Pequim que trabalha com direitos das mulheres à terra há 20 anos.

"Do ponto de vista da manutenção da estabilidade social, os governos locais ou tribunais definitivamente estão mais inclinados a proteger os benefícios da maioria", disse Lin. Ela disse que recebeu de 40 a 50 consultas por ano e que cerca de 90% de seus processos judiciais foram malsucedidos.

SOLIDARIEDADE

Diante das dificuldades, as mulheres também encontraram comunidade.

Na sala de estar, mulheres que se chamavam de irmãs planejavam uma visita ao escritório, comiam lichias e riam sobre o tratamento ruim dos aldeões, que jogavam lixo em suas portas. Competiam sobre qual assembleia de aldeia era pior.

Elas debateram táticas. Se escrevessem uma carta sobre sua situação para um escritório do Estado de nível mais alto, deveriam detalhar todos os aspectos ou manter geral? Algumas estavam céticas sobre ir ao escritório, dada a quantidade de vezes que foram rejeitadas. Mas outras disseram que o ponto era documentar cada passo, bem-sucedido ou não, para fortalecer seu caso.

No escritório na manhã seguinte, as mulheres pareciam ser uma presença familiar para os funcionários, que precisavam de pouca explicação sobre suas queixas. Por quase duas horas, as mulheres as apresentaram mesmo assim.

Finalmente, pouco depois do meio-dia, elas saíram, triunfantes. Elas não tinham garantido seus pagamentos —longe disso. Mas um funcionário concordou em fornecer a elas um reconhecimento por escrito de sua visita, que agora poderiam levar ao próximo escritório do Estado que visitassem.

"Vamos dar um passo de cada vez e ir a um lugar de cada vez", disse uma das mulheres.

Elas entraram nos carros, foram almoçar e planejar seu próximo movimento.

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