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"O
rei veio à praia com 10 ou 12 mil homens e prendeu a nossa
gente que estava em terra"
Desordem
em Calicute
De como
o capitão foi ter com o rei de Calicute
Chegamos a Calicute no dia 13 de setembro de 1500. Quando estávamos
a uma légua da cidade, veio receber-nos uma frota de batéis.
As embarcações traziam o catual de Calicute, um mercador
guzerate muito rico e os principais da cidade. O grupo entrou na
nau do capitão e disse-lhe que tinha muito prazer em recebê-lo.
Deitamos, então, as nossas âncoras em frente à
cidade e disparamos uma salva de artilharia. Os indianos maravilharam-se
e disseram que, contra nós, somente Deus poderia sair vencedor.
E assim passamos aquela noite.
Na manhã seguinte, o capitão determinou que fossem
levados à terra os indianos que trazíamos conosco
de Portugal, cinco ao todo: um mouro que entre nós foi convertido
ao cristianismo e quatro pescadores gentios -todos falavam muito
bem o português. O capitão os enviou ao rei muito bem
vestidos, com a missão de explicar-lhe a que vínhamos
e, também, de solicitar-lhe um salvo-conduto para que pudéssemos
desembarcar. E foi o que fizeram. Entretanto, somente o mouro pôde
falar com o rei, pois os outros homens, sendo pescadores, não
ousaram se aproximar do monarca, não ousaram nem mesmo fitá-lo.
Como veremos mais à frente, o rei julga indispensável
esse costume, em razão de sua magnificência e posição.
O rei, como referi, mandou expedir um salvo-conduto para todos os
que desejassem desembarcar. Logo que soube disso, o capitão
tratou de enviar à terra Afonso Furtado, na companhia de
um intérprete que falava árabe, para informar ao rei
que as nossas naus pertenciam ao rei de Portugal, o qual os enviara
àquela cidade para firmar um tratado de paz e comércio
com eles. Para isso, no entanto, prosseguia a mensagem, era necessário
que o capitão desembarcasse, o que, de acordo com as determinações
do rei de Portugal, só poderia ser feito se tivesse em poder
dos seus pessoas da cidade que garantissem a sua vida.
Diante disso, o capitão solicitava ao rei de Calicute que
enviasse as tais pessoas, as quais seriam escolhidas por Afonso
Furtado. O rei, depois de ouvir a embaixada, recusou firmemente
as reivindicações do capitão, alegando que
os homens escolhidos eram velhos e veneráveis e que não
podiam entrar no mar.
Propunha, todavia, substituir os escolhidos por outros. Afonso Furtado
respondeu-lhe que não poderia aceitar a troca, pois os nomes
escolhidos haviam sido recomendados ao capitão pelo próprio
Rei de Portugal (8). Sua Alteza espantou-se com a resposta e, durante
dois ou três dias, refletiu sobre o assunto.
Finalmente, o rei teve por bem aceitar as reivindicações,
o que de imediato foi comunicado ao capitão, que desejava
passar dois ou três dias em terra. O capitão levou
consigo 20 ou 30 homens dos mais honrados, todos em boa ordem, com
seus oficiais, como convinha aos que estavam a serviço de
um príncipe. Levou também toda a prataria que havia
nas naus, naus que ficaram sob o comando do seu imediato Sancho
de Tovar, a quem coube o encargo de recepcionar com todas as honras
os homens da terra, dados como reféns ao capitão.
No dia seguinte, o rei deslocou-se para uma casa que tinha junto
à marinha e enviou à nau do capitão cinco homens
muito honrados, os quais levaram consigo cerca de cem homens de
espada e escudo, mais 15 ou 20 tambores. O capitão partiu
com seus batéis, tendo anteriormente remetido para a terra
tudo o que lhe era necessário. Mal havia partido o capitão,
chegaram às naus os cinco homens mencionados. Esses não
queriam subir a bordo enquanto o capitão não desembarcasse.
Durante um bom tempo permaneceu esse impasse. Aires Corrêa
embarcou no seu sambuco, isto é, batel, e os convenceu a
embarcar, o que foi feito quando o capitão já tinha
alcançado a terra. Ao desembarcar, o capitão e aqueles
que o acompanhavam foram recebidos por muitos gentis-homens e carregados
nos braços até a casa do rei. Somente aí puseram
os pés em terra.
Dos trajes do rei de Calicute em sua
residência
O rei esperava numa casa alta, sentado sob um dossel, rodeado por
20 almofadas de tapeçaria de seda. A cobertura do dito dossel
era também de seda, de uma cor próxima à púrpura.
O monarca estava nu da cintura para cima, trazendo, da cintura para
baixo, um pano de algodão -muito alvo e bordado com fios
de ouro- enrolado ao corpo. Na cabeça, usava um barrete de
brocado, no formato de um capacete alto e comprido. Suas orelhas
eram furadas e adornadas com grandes peças de ouro, peças
cravejadas com rubis de grande valor, com diamantes e com duas grandes
pérolas: uma redonda e outra em formato de pêra, do
tamanho de uma avelã. Nos braços, do cotovelo para
baixo, trazia grandes braceletes de ouro, cravejado de ricas pedras
preciosas e pérolas de alto valor. Também nas pernas
trazia o monarca grandes riquezas e, num dos dedos do pé,
tinha um anel com um rubi de farto brilho e valor. Os dedos das
mãos eram cheios de anéis, todos repletos de pedras
preciosas, como o rubi, a esmeralda e o diamante -um dos quais,
do tamanho de uma fava grande. Dois cintos de ouro, com muitos rubis
sobre o tecido, adornavam a sua cintura. Sua alteza, em suma, trazia
sobre si imensa riqueza.
Havia, junto ao rei, uma cadeira toda de prata, com os braços
em ouro cravejados de pedras preciosas. Havia também, na
casa, um andor, no qual dois homens carregavam o monarca -foi assim
que ele veio da casa grande, onde habitualmente ficava, para esta
residência. Esse andor era de uma riqueza indescritível.
Vimos, ainda, cerca de 15 a 20 trombetas de prata e três de
ouro, com os bocais adornados com pedras preciosas, uma das quais
de um tamanho tal que precisava de dois homens para carregá-la.
Próximo ao dossel, o rei mantinha quatro vasos de prata,
muitos jarros de bronze, grandes candelabros de latão e outros
cheios de óleo e pavios; todos estavam acesos sem que isso
fosse necessário, apenas por luxo.
O rei se encontrava na companhia de seu pai -afastado do dossel
seis ou sete passos- e de dois dos seus irmãos, os quais,
tal como outros homens honrados que estavam na sala e se mantinham
mais distantes, carregavam sobre si grande riqueza. O capitão,
logo que entrou, manifestou a intenção de beijar a
mão do rei, mas foi desencorajado, pois os costumes locais
vedam qualquer aproximação de Sua Alteza. Diante disso,
o capitão permaneceu onde estava. O rei, para prestar-lhe
honra, o fez sentar-se. Dando início à embaixada,
o capitão leu a carta do rei de Portugal, escrita em língua
arábica, e mandou trazer o presente, do qual falaremos a
seguir.
O presente que foi dado ao rei e a
desordem que se seguiu
Para começar, uma bacia de prata para lavar as mãos,
muito grande e com figuras em relevo, tudo dourado; um gomil de
prata dourada, de tampa trabalhada com figuras em relevo; duas maças
de prata, com as respectivas cadeias de prata para os maceiros;
quatro almofadas grandes, sendo duas de brocado e duas de veludo
carmesim; um baldaquim de brocado carmesim, com franjas de ouro;
um tapete grande e dois panos de arrás muito ricos, um com
figuras e outro com arvoredos; e um jarro para despejar água
nas mãos, com o mesmo trabalho da bacia. Depois de ler a
carta e receber o presente, o rei mostrou-se muito contente. Dirigindo-se
ao capitão, disse-lhe que poderia ocupar a casa que lhe fora
preparada, mas que deixasse voltar à cidade os cinco homens
que estavam nas naus, pois eram gentis-homens e não poderiam
comer, beber ou dormir no mar. Todavia, prosseguiu, se o capitão
desejasse retornar ao seu navio, que mandasse de qualquer modo desembarcar
os cinco homens, os quais retornariam às naus no dia seguinte,
enquanto o capitão cuidasse dos seus assuntos em terra. O
capitão, com efeito, retornou ao navio, deixando em sua casa
Afonso Furtado e mais sete ou oito homens.
Quando o capitão saiu da praia, um sambuco, com um homem
de Calicute, partiu na frente e se dirigiu às naus para avisar
aos gentis-homens que o capitão voltava. Esses, mal ouviram
a notícia, atiraram-se na água. Aires Corrêa,
feitor-mor, imediatamente embarcou num batel e capturou dois dos
principais e dois ou três domésticos; os outros fugiram
nadando para a terra. Nesse ínterim, o capitão subiu
a bordo e ordenou que os dois principais capturados fossem colocados
sob a coberta.
Mandou, em seguida, dizer ao rei de Calicute que, ao chegar à
nau, encontrou uma imensa desordem, causada por um dos seus escrivães,
e que havia mandado reter dois dos gentis-homens da cidade como
reféns, pois muitos dos seus e de sua mercadoria ainda se
encontravam em terra.
O capitão, por fim, propunha ao rei trocar os gentis-homens
-que seriam muito bem tratados enquanto estivessem a bordo- pelos
nossos homens e bens. Dois dos domésticos detidos foram encarregados
de levar essa embaixada ao rei. Esperamos pela resposta durante
toda a noite. No dia seguinte, o rei veio à praia com 10
ou 12 mil homens e prendeu a nossa gente que estava em terra. Seu
propósito era embarcar os nossos nas almadias e efetuar a
referida troca. E assim vieram 20 ou 30 almadias, da praia, e partiram
das naus os batéis com os reféns. Nem as almadias
tinham coragem de se aproximar dos nossos batéis, nem os
nossos batéis, das almadias. E nesse impasse permanecemos
durante todo aquele dia.
Quando as almadias retornaram à terra, os nossos homens foram
muito destratados e ameaçados. Passaram aquela noite em grande
atribulação, ouvindo ameaças de morte. No outro
dia, o rei mandou informar que mandaria novamente os nossos homens
e as nossas mercadorias nas almadias, que essas estavam desarmadas
e que deveríamos enviar os batéis com a sua gente.
Sancho de Tovar rumou, então, para onde estavam as almadias
e começou a receber toda a prataria e as demais mercadorias
que deixáramos em terra. Faltavam, todavia, os nossos homens
e um
almofreixe, onde guardávamos uma cama e seus acessórios.
Estávamos nisso quando um dos gentis-homens que vinham nos
batéis, e que Sancho de Tovar trazia preso pelo braço,
se soltou e pulou no mar. Vendo isso, os homens da armada que estavam
numa das almadias enfureceram-se e lançaram ao mar os seus
vigias. Desse modo, nos batéis ficou somente um velho gentil-homem
(dos que haviam servido como refém) e nas almadias restaram
dois rapazes que não conseguiram escapar. No dia seguinte,
o capitão apiedou-se do velho, que havia três dias
não comia, e o mandou para a terra. Com ele seguiram todas
as armas que haviam ficado nas naus quando da fuga dos homens e
uma solicitação ao rei de Calicute para que liberasse
os dois rapazes -o que foi feito com presteza.
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dos muros
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