Os migrantes,
constatou a chef Mara Salles, esquecem suas raízes
e se enchem de produtos industrializados
O talento culinário de Mara Salles foi despertado por
uma desgraça familiar. Sem dinheiro, o pai teve de
se mudar para São Paulo, onde 12 pessoas dividiriam
uma casa em Perdizes. Além de ter de preparar a comida
para todos, evitando ao máximo desperdícios,
Encarnação, a mãe de Mara, ganhava uns
trocados vendendo marmitas. "A cozinha tornou-se para
mim ao mesmo tempo um refúgio e uma sala de aula."
A busca de um refúgio era compreensível. Ela
morava numa fazenda, quase sempre estava descalça,
subia em árvores e tomava banho de rio. "Imagine
o que é para uma menina do mato ter de ficar, na marra,
na cidade grande."
Mara só foi reconhecer, muito tempo depois, o valor
daquela sala de aula improvisada em sua casa. Abriu um restaurante
(Tordesilhas), considerado por cinco anos consecutivos, de
acordo com revistas especializadas, o melhor em cozinha brasileira.
Nesta semana, ela volta a lidar com a escassez na cozinha
dos tempos em que, menina, aprendeu a tirar proveito da xepa
da feira. Desta vez, sua clientela é bem diferente
daquela que costuma ir a seu restaurante. Estará na
escola estadual D. Pedro I, em São Miguel Paulista,
na zona leste, dando um curso gratuito intitulado "Ingredientes
de segunda, comida de primeira".
Para aprimorar seus conhecimentos, Mara desenvolveu o hábito
de fazer "residências" culinárias,
viajando pelo Brasil: passa algum tempo morando com famílias,
observando como preparam suas refeições. Dali
vai tirando as inspirações para suas receitas.
"Essa vivência é fundamental." Acabou
de voltar, nesta semana, do Vale do Jetiquitinhonha, em Minas
Gerais, onde ficou por dez dias numa fazenda. "É
incrível o que eles são capazes de fazer com
o milho." Muito desse conhecimento se desfaz quando as
famílias vêm para São Paulo. Os migrantes,
constatou a chef, esquecem suas raízes e se enchem
de produtos industrializados.
Seu primeiro desafio será resgatar a culinária
para festas juninas. "Muita gente da zona leste vem do
Nordeste e abandonou as tradições."
Durante quatro dias, Mara, convidada pela Fundação
Tide Setubal, instalada na zona leste, dará aulas para
donas-de-casa e merendeiras de escolas públicas, a
quem pretende ensinar pratos nutritivos e saborosos. "É
importante as pessoas ouvirem da boca de um chef que, na casa
deles, há muito desperdício e que podem tratar
o alimento com carinho. Quero despertar a percepção
de que ser pobre não é motivo para não
fazer coisas boas e gostosas." Parte da visão
de Mara vem do fato de que ela se mudou para São Paulo
e não se desconectou da herança do vida do interior.
"Sempre mantive o gosto de fazenda na boca." Mas
seu interesse em São Miguel tem laços mais fortes
do que as lembranças da fazenda. Está associado
às lições que aprendeu na família,
especialmente com as artes de Dona Dega, como é conhecida
Ercanação. Talvez por isso, simbolicamente,
uma das professoras que levará para a periferia será
a sua mãe, detentora de uma receita de bolo de fubá
dos tempo do forno a lenha.
Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo,
editoria Cotidiano.
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