HOME | NOTÍCIAS  | SÓ SÃO PAULO | COMUNIDADE | CIDADÃO JORNALISTA | QUEM SOMOS


REFLEXÃO


Envie seu comentário

 

folha de s. paulo
20/02/2005
O Brasil com chantilly

Terça-feira, 15 de fevereiro de 2005. A data é um marco tragicômico na história do Brasil.

Montado numa plataforma de generosidade com o dinheiro público, estimada em R$ 110 milhões para os parlamentares -aumento de salários e mais verbas para seus gabinetes, o deputado Severino Cavalcanti elegeu-se presidente da Câmara.
Poucos momentos depois do final da votação na Câmara dos Deputados, 1.111 entidades promoveram uma das maiores manifestações de que se tem notícia contra o aumento de impostos. Daquele encontro, em São Paulo, saiu um manifesto, em meio a mãos dadas ao som do hino nacional, para combater os gastos públicos e aumentar a participação da sociedade civil nas decisões oficiais.
A distância política de Brasília diante do resto do país é muito maior do que a geográfica -foi o que se sintetizou magistralmente na terça-feira.

Naquele dia, o Congresso, com a vitória de suas reivindicações corporativas, parecia mais próximo do castelo de Chantilly, na França, onde uma modelo e um jogador de futebol se alimentavam de futilidades, do que da guerra entre PMs e sem-teto em Goiânia, a poucos quilômetros de Brasília.

Propor aumentar vantagens de deputados num momento como este, quando a crise social é tão aguda e ninguém agüenta transferir mais dinheiro ao governo, sugere mesmo um clima de fantasia de história de castelo. Ou, então, de baixaria, como a que foi protagonizada por duas modelos que transformaram diferenças da vida amorosa em brigas públicas, o episódio mais noticiado de um casamento cujo custo ficou em cerca de R$ 2,5 milhões. Uma ninharia, convenhamos, ao lado dos R$ 110 milhões de Severino, defensor da idéia de que um parlamentar tenha 90 dias de férias.

Há algum tempo, nota-se no país um movimento de rebelião contra essa mistura de aumento de impostos com desperdício de recursos públicos. Quanto mais subiam os tributos, maior era a irritação com os desperdícios, que se disseminam, numa espécie de metástase, nos três níveis de poder: federal, estadual e municipal.
Vou dar um exemplo de desperdício que sintetiza todos os demais. Periodicamente, realizam-se avaliações oficiais sobre o desempenho dos alunos do ensino básico da rede pública, ou seja, daqueles que usam o dinheiro pago pelo contribuinte, que, como se sabe, trabalha, em média, mais de três meses apenas para bancar as contas do governo.

Fixem esta porcentagem: apenas 3% dos alunos da rede pública exibem um nível de aprendizado considerado adequado. Vamos enfatizar: 97% não aprendem o que deveriam aprender. Podem colocar quanto quiserem de chantilly nesse fato, que não fica nem remotamente doce.

Somam-se, assim, dois fatos: excesso de impostos e carência de resultados. Se pudéssemos nos orgulhar e tirar proveito dos serviços públicos, para muitos os tributos não provocariam tanto incômodo -afinal, seria apenas uma troca. Além dos tributos, pagam-se mensalidade escolar, planos de saúde privados, fundos de aposentadoria, segurança da rua. Para andarmos em boas estradas, temos de pagar pedágio.

O governo torra o dinheiro quase só com funcionalismo e juros da dívida; o retorno, portanto, é baixíssimo. Ainda somos obrigados a ficar de auto-estima elevada porque somos estimulados a acreditar que, afinal, o melhor do Brasil é o brasileiro.
Mesmo que o retorno do imposto fosse razoável (o que, por enquanto, é uma hipótese remota), há mais uma questão a levantar. Será que esse nível de taxação, num país pobre, não torna mais difícil para as empresas expandir-se e gerar empregos?

Afinal, a mais elementar garantia de desenvolvimento social é o emprego e o salário. Um país que gera poucos empregos produz miséria e, nesse caso, as políticas assistenciais e sociais têm baixo impacto. Ninguém sabe quando (nem se) conseguiremos reduzir os programas de distribuição de bolsas aos mais pobres; sem crescimento econômico e melhoria da educação, distribuição de bolsas é uma bengala permanente.

A terça-feira, 15 de maio, é o marco de uma rebelião nacional que tende a aumentar. Vimos, na planície, a sociedade se organizar para poder trabalhar e gerar riquezas e, no planalto, o poder se fechar em seus privilégios.

Por sinal, naquele castelo francês, inventou-se o creme chantilly para agradar à corte do rei Luís 14, com seu enorme séquito de nobres desocupados. Todos sabem como acabaram, anos depois, os nobres, quando veio uma revolução para cortar os privilégios da corte que levaram à falência as finanças públicas.

PS - Podem apostar. A agenda que vai acabar, mais cedo ou mais tarde, encantando o brasileiro é simples: gastar menos e melhor. Esse é o caminho para o país produzir mais e melhor. O resto é tentar cobrir a pobreza com chantilly.

Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

COLUNAS ANTERIORES
16/02/2005
Visão de futuro
15/02/2005
Plano contra gravidez precoce merece aplausos de pé
13/02/2005
Um fato novo na agenda social brasileira
09/02/2005
A escola do prazer
06/02/2005
Experiência com samba ensina o prazer de aprender
01/02/2005
Como acabar com FHC
23/01/2005
O QI da cidade de São Paulo
19/01/2005 Escola dá vida
16/01/2005
Criança não é brincadeira
12/01/2005
Emprego da onda