HOME | NOTÍCIAS  | SÓ SÃO PAULO | COMUNIDADE | CIDADÃO JORNALISTA | QUEM SOMOS


REFLEXÃO


Envie seu comentário

 

urbanidade
20/10/2004
Emprego de brincadeira

Desempregada, Antonia Joyce Venancio via despencar gradativamente seu padrão de vida. Logo no primeiro mês cortou a assinatura de uma revista e deixou de ir ao cinema -"um dos meus prazeres prediletos". Parou de ir a restaurantes e desistiu do plano de saúde. Resistiu o quanto pôde, mas cedeu: nada lhe doeu mais do que ter de deixar a faculdade de psicologia. "Isso para mim era o fim da linha." Quase não tinha mais nada para reduzir em seu orçamento quando foi salva por uma brincadeira de infância e acabou virando empresária.

Negra, de olhos castanhos ("a cor dos olhos é herança de meu avô que veio do Egito"), Antonia cresceu com uma avó que lhe fazia, com meias velhas, bonecas negras. As primas e primos, além de alguns amigos negros, seduziam-se pela destreza daquela habilidosa avó, com suas originais bonecas. "As bonecas faziam um sucesso danado."

A boneca virou, na família, mais um detalhe para discutir preconceito racial. "Só havia bonecas brancas, quase sempre loiras." A própria Antonia sentiu, diversas vezes, o peso da cor. Certa vez, a professora pediu que os alunos trouxessem recorte de jornal ligado à profissão que gostariam de seguir. Antonia levou uma propaganda com a foto de uma aeromoça. Seja por preconceito, seja por sentir que a menina estava fantasiando um futuro impossível, a professora deu-lhe, ali mesmo na classe, a foto de uma mulher negra para incluir em seu trabalho. Era a foto de uma empregada doméstica. "Nunca mais me esqueci daquilo; era como se uma negra só pudesse ser empregada doméstica."

Acuada há mais de 12 meses pelo desemprego, inspirou-se na avó e chamou a família para ajudá-la a criar bonecas negras, quem sabe ganharia algum dinheiro. "Ia para tudo quanto era canto vendendo meu produto." Com o pouco que juntou, resolveu fazer uma aposta: abriu, há quatros meses, uma loja numa garagem de menos de 15 m2.

Lentamente foi chegando a clientela, na onda do politicamente correto e, mais que isso, do crescimento da classe média negra. Na semana passada, foi surpreendida por uma entidade de educação empresarial que lhe ofereceu ajuda para dar escala às bonecas. Por fim, ligaram para ela sugerindo "franchising", palavra que, até então, tinha ouvido várias vezes, mas não sabia o significado exato. Sabe agora que significa mais dinheiro, para seus negócios e especialmente para voltar à faculdade. "Fui salva por uma brincadeira."


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

COLUNAS ANTERIORES
18/10/2004 Camisinha de cérebro
18/10/2004
O escândalo das meninas grávidas
15/10/2004
Marterra venceu
13/10/2004
Jovens mestres
12/10/2004
Chance de ouro para o Brasil
10/10/2004
Lições da noite paulistana
06/10/2004
Os votos de Soninha
04/10/2004
Injustiça contra o Datafolha
04/10/2004
PT ganhou poder, mas perdeu alegria
03/10/2004
Voto Marterra