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REFLEXÃO


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folha de s. paulo
21/03/2004
Vida, leva eu

O principal debate da semana passada no país girou em torno da conduta ética de Zeca Pagodinho, que, ao aceitar uma bolada da Brahma, abandonou a Nova Schin, marca de cerveja da qual era garoto-propaganda. Com a ajuda providencial de alguns milhões de reais, ele abandonou um amor de verão e voltou, feliz e bem mais rico, à velha paixão. O pior, no entanto, não está aí.

Nessa guerra, Zeca Pagodinho é um detalhe tão passageiro como um amor de verão. Pela quantia envolvida e pela genialidade das peças publicitárias, como vimos na semana passada, a questão essencial é a abundância de recursos para convencer as pessoas, especialmente os jovens, a associar álcool a saúde, beleza, sensualidade, modernidade.

É uma luta desigual, num país em que, segundo pesquisas da Unesco, crianças começam a beber, em média, aos 13 anos.

Os índices de acidentes de trânsito e de violência que envolvem jovens alcoolizados bem poderiam ser ilustrados pelo trecho de uma das músicas mais conhecidas de Zeca Pagodinho: "Deixa a vida me levar / Vida, leva eu". Apesar de errar na construção sintática, fazendo uso inapropriado do pronome do caso reto, a letra acerta na tradução emocional dos números.

Os pais de adolescentes colecionam histórias e mais histórias de colegas de seus filhos -ou mesmo dos próprios filhos- que se deixam levar pela vida, expostos aos riscos do consumo do álcool. Desorientados, educadores recebem relatos sobre as festas de estudantes, nas quais se bebe até cair.

Porre e juventude não se casaram agora -é óbvio. Mas o nível de abuso a que estamos assistindo é algo novo, talvez provocado por um pacote que inclui desestruturação familiar, falta de limite, demanda por sucesso a qualquer preço, estresse urbano, ausência de utopias, estímulo quase histérico ao consumo como estilo de vida. Repete-se por todos os lados que consumir é prazer.

Psicólogos, educadores e psicopedagogos têm revelado preocupação com uma crescente indisciplina (e cada vez mais agressiva) em sala de aula, enquanto detectam em estudantes evidentes sintomas de baixa auto-estima, de depressão e de ansiedade.

Quem quiser tirar as dúvidas consulte, por favor, a orientadora educacional de qualquer escola que mereça o título de escola.

Não vou aqui fazer papel de moralista, defendendo lei seca ou mesmo proibição radical da propaganda. Cresci ouvindo, durante as cerimônias religiosas, que nós, judeus, seríamos supostamente menos propensos ao alcoolismo porque, desde bem pequenos, tomamos vinho pelo menos uma vez por semana, a exemplo dos italianos -e essa atitude ajudaria a desmistificar o álcool.

Nem vou apelar, ingenuamente, para o desprendimento dos anunciantes.

Até reconheço que, entre publicitários, há gente preocupada com o bombardeio de mensagens perigosas associando álcool a liberdade. Certamente existem entre publicitários, assim como entre executivos de cervejarias, pais de filhos adolescentes que devem, como eu, passar a madrugada de olho na porta, preocupados com o que acontece na rua.

O problema é a desigualdade na disseminação de atitudes e de informações.

Este artigo que você está lendo tem entre os jovens o impacto semelhante ao da frase insossa e fria: "Beba com moderação", apresentada depois de exuberantes paisagens com música, mulheres, praias.

É a batalha de Golias contra um Davi de mãos atadas. Como se não bastassem a genialidade publicitária e as fortunas para sustentá-la, a sociedade não está conscientizada dos perigos do excesso de álcool. Governos não desenvolvem programas preventivos. São raras as escolas que trabalham o tema do abuso de álcool; quando o fazem, ele aparece de forma moralista, "careta", com o jeito da tal "ilha quadrada". Famílias pouco se incomodam com isso; estão mais atentas à possibilidade de os filhos usarem maconha.

Daí que, para mim, a atitude de Zeca é tão relevante nessa confusão como seu cachê no bolo publicitário das cervejas. Como mostrou o magistral artigo de Danuza Leão, na terça-feira, ele é apenas um bobo útil orientado por uma esperteza inútil.

PS - Aos educadores vai uma dica: experiências de redução de danos, feitas inicialmente nos Estados Unidos -mais precisamente em Seattle-, surtiram bons efeitos. Os jovens foram cercados de mensagens de que poderiam beber, mas de que a alegria seria maior se fossem espertos e não se expusessem a riscos inúteis. Reproduziu-se essa experiência com calouros da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Resultado: os estudantes beberam em menos dias na semana e diminuiu a quantidade de doses consumidas, bem como o número de vezes em que eles ultrapassaram os limites do razoável.

 

Esta coluna é publicada originalmente na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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