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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
24/04/2006
Grito de independência

Está sendo arquitetada uma mobilização cujo resultado final será a ampliação do conceito de nação independente. Pela influência das pessoas envolvidas, esse movimento talvez seja um dos fatos novos não só das eleições deste ano mas da construção de políticas públicas no país.

A idéia de independência está associada à autonomia das nações e à proteção de suas riquezas contra interferências estrangeiras. A morte de Tiradentes, lembrada na sexta-feira, simboliza uma revolta contra a cobiça dos portugueses ao ouro e ao diamante do Brasil. Não por acaso, o governo federal escolheu a proximidade do 21 de abril para anunciar nossa auto-suficiência em petróleo. É fácil entender a independência quando falamos em petróleo, ouro e diamantes. Afinal, são riquezas visíveis, palpáveis.

Mas até que ponto um país em que a maioria de seus habitantes não consegue ler e entender um texto com o mínimo de complexidade -o que os impede de analisar criticamente propostas de candidatos ou até mesmo exercer seus direitos básicos- pode ser considerado de fato independente? Pode até ser formalmente, mas seus habitantes não o são -essa é a provocação que se prepara para o próximo mês de setembro, durante o lançamento de um manifesto no espaço simbólico do Museu do Ipiranga.

Até lá, aposta-se que milhares das mais importantes personalidades brasileiras, representando de entidades trabalhistas a empresariais, passando por reitores, acadêmicos, esportistas e políticos, tenham assinado um documento com metas detalhadas até 2022 (bicentenário da independência), para que o brasileiro rompa o ciclo da ignorância.

As conversas de bastidores se iniciaram em agosto do ano passado e envolvem personagens como Jorge Gerdau, Jorge Paulo Lemann, José Roberto Marinho, Luis Norberto Paschoal, Ana Maria Diniz, Milú Villela, Viviane Senna, além de altos executivos de alguns dos maiores bancos e de empresas. Encomendou-se uma pesquisa com 61 especialistas em educação brasileira para que se montasse um projeto de longo prazo.

Com base nesse mapa estratégico, um encontro reuniu na semana passada, em São Paulo, altos funcionários de diferentes governos, a começar do federal, dirigentes de entidades não-governamentais, dirigentes de entidades que representam secretários estaduais e municipais de todo o país, além da Unesco e do Unicef.

A idéia é fazer o país monitorar indicadores como quantidade de crianças fora da escola, média de hora-aula, provas de conhecimento aplicadas nas redes estaduais e municipais (Saeb, Enem), órgãos colegiados na escola, assim como se monitoram os saldos da balança comercial, os números de emprego, da inflação ou da produção de petróleo.

Estabelecidos os indicadores, o movimento se propõe a mobilizar permanentemente a sociedade, estimular a continuidade de políticas públicas que melhorem a qualidade do ensino e valorizar as boas práticas. A mobilização começa nestas eleições, com um pedido de compromisso dos candidatos a presidente, governador, deputado e senador.

A aposta é que, com o tempo, as pessoas percebam o conhecimento como uma riqueza superior à do petróleo. A Petrobras é, em essência, um caso educacional. A auto-suficiência tão sonhada só foi atingida devido à formação de técnicos qualificados e a investimentos pesados em conhecimento para exploração em águas profundas. Produziram engenheiros de reputação mundial. Tudo começou com um sonho de um dos mais importantes educadores brasileiros: Monteiro Lobato, que, através de suas pregações e de algumas de suas histórias infantis, trouxe para o imaginário nacional a conquista do petróleo. Ele próprio investiu em prospecção. Dele é a frase de que um país se faz de homens e livros.

Esse segundo sonho dele -o dos livros- é muito mais complexo. Somos uma nação que herdou da escravidão uma baixa reverência à inclusão. Não aprendemos a reverenciar a democratização do conhecimento; prova disso é o baixo envolvimento das famílias no aprendizado dos filhos. Para piorar, estamos acostumados a pensar a curto prazo, o que se reflete na descontinuidade das ações administrativas -uma praga cujo efeito é pior do que a corrupção.

O problema, porém, é que, assim como a escravidão acabou porque não fazia sentido nem moral nem econômico, a deseducação tem de ser enfrentada porque impede o desenvolvimento coletivo numa era marcada pela rápida inovação tecnológica com base na informação. Daí que o movimento pela melhoria da educação para todos só tem comparação na história das conquistas da cidadania brasileira com a abolição da escravatura. Como a ignorância é uma forma de escravidão, a independência se conquista não só debaixo do solo mas dentro das cabeças -é aí que reside a energia de uma nação.

P.S. - Monteiro Lobato era um dos entusiastas de um dos movimentos de maior lucidez de toda a história brasileira, que resultou no "Manifesto dos Pioneiros da Educação", escrito em 1932. Assim começa o texto: "Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importância e gravidade ao da educação. Nem mesmo os de caráter econômico lhe podem disputar a primazia nos planos de reconstrução nacional". Talvez, apenas agora, o país esteja preparado para entendê-lo.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

Veja o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova - A reconstrução educacional no Brasil

   
 
 
 

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