A cidade de São Paulo estava preparada
para ser liderada por José Serra, mas José Serra não estava
preparado para liderar a cidade de São Paulo.
Uma das maiores cidades do planeta elegeu um prefeito que,
de fato, não queria ser prefeito, muito mais interessado em
temas nacionais e internacionais. Impedido de disputar a Presidência
da República, ele se transformou em candidato a governador,
provavelmente à espera de, quem sabe, outra oportunidade para
chegar ao Palácio do Planalto.
É compreensível. Serra é um dos mais preparados governantes
brasileiros, testado em diversos tipos de cargo (e nos quais
se saiu bem, elogiado até mesmo por seus desafetos). Ele integra
um grupo de brilhantes políticos intelectuais interessados
num projeto de nação que combinasse democracia, crescimento
e distribuição de renda. A temática urbana, nessa agenda,
é lateral.
Esse desencontro vai muito além de questiúnculas provincianas:
revela uma visão sobre a importância das ações locais para
o desenvolvimento do país.
São Paulo é marcada pela selvageria por todos os lados. Na
semana passada, por exemplo, um morto, vítima de atropelamento,
esperou por incríveis cinco horas até ser removido -e, provavelmente,
só não demorou mais porque a imagem estava sendo transmitida,
em tom indignado, pelas emissoras de televisão.
O corpo estava a poucos metros do prédio da prefeitura e
poderia ser visto da sala do prefeito. Essa é uma cidade com
3 milhões de pobres, dos quais 1,5 milhão são indigentes.
Pessoas vivem sob os viadutos lembrando, sem exagero, homens
das cavernas. Ocorrem aqui cem seqüestros relâmpagos por mês.
Mas, ao mesmo tempo, São Paulo está cada vez mais educada,
sofisticada e cosmopolita, gerando centros de excelência.
Todas as "tribos", das mais conservadoras às mais exóticas,
são contempladas com oportunidades.
A vida cultural paulistana oferece mais e mais opções. Por
tudo isso, atrai-se o que há de melhor do capital humano brasileiro.
Na cidade desumana e selvagem, geram-se notáveis redes de
solidariedade. Há toda uma geração de jovens executivos e
empresários, convencidos, sinceramente, de que devem se preocupar,
além do lucro de seus negócios e de seus apetites materiais,
com seu entorno. É crescente o número de universitários que
entram nas melhores faculdades para estudar responsabilidade
social.
Em todos os bairros, vemos experiências contra a violência
e por mobilização em busca de uma melhor educação, saúde,
cultura e lazer. Não há escola de elite que não convide seus
alunos a agir em favelas, asilos, creches. Centenas de milhares
de cidadãos se dispõem a ser voluntários em alguma coisa,
qualquer coisa, sem esperar pelo governo.
Movidos pelo medo e pela crônica incompetência pública, os
cidadãos estão tentando fazer parte das soluções, e não dos
problemas. Essa é a base do renascimento paulistano.
Serra tinha tudo para sintetizar e estimular esse ambiente
de efervescência. Não só pelo seu reconhecido preparo mas
porque ele simboliza a própria essência do que é o melhor
desta cidade: a combinação de diversidade e empreendedorismo.
Somos uma comunidade de migrantes e imigrantes. É gente
que veio por baixo e impulsionou seus filhos para cima. Serra
é um deles: nasceu e foi criado na zona leste, em uma família
de feirantes para os quais não existia, muitas vezes, nem
feriado nem final de semana. Gente que já estava de pé de
madrugada.
Foi o menino da Mooca que estudou em escola pública e se
aprimorou em centros de excelência no mundo. Tinha tudo para
entender e encarnar um projeto histórico e inovador de São
Paulo. Entender ele entendia, mas não encarnou esse projeto.
Nas pesquisas de opinião, a administração de Serra é extremamente
bem avaliada -e com uma boa dose de razão. Com o que ele demonstrou
em pouco mais de um ano, dá para imaginar até onde se chegaria
se cumprisse o mandato. Impossível, porém, avaliar sua gestão:
o que está aí é, na melhor das hipóteses, apenas um rascunho
de administração. Um projeto completo implicaria um pacto
metropolitano, a inserção de São Paulo no mundo como cidade
global e uma articulação dos mais diferentes níveis de políticas
públicas para a redução da miséria e da violência. É um desafio
de estadista, para o qual Serra, como pouquíssimas pessoas
que passaram pela prefeitura, estava habilitado.
Mas seu projeto de vida não se encaixou com o projeto de
uma cidade que, na luta entre a selvageria e a sofisticação,
tenta a todo custo virar uma comunidade civilizada -uma comunidade
em que um corpo, ao lado da prefeitura, não precise esperar
por cinco horas para ser recolhido.
P.S. - A favor de Serra. Ele argumenta que, uma vez governador,
conseguirá ajudar a cidade. É verdade. Parte expressiva do
que se faz aqui depende de verbas estaduais. Fala-se também
que, com uma boa parceria com o prefeito, ainda mais e melhor
pode ser feito. Verdade. Mas também é verdade que, se quisesse,
ele teria montado um modelo de gestão urbana capaz de influenciar
todo um país, onde uma das questões centrais é a bomba metropo-
litana.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
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