O Colégio Objetivo procurou, no
ano passado, superdotados entre alunos da sétima série de
51 escolas da rede municipal da cidade de São Paulo. Os escolhidos
ganhariam mensalidade gratuita, aulas no curso pré-vestibular,
bolsa em dinheiro e ajuda extra para desenvolver suas aptidões.
Depois de meses de seleção entre uma gigantesca fila de pretendentes,
sobraram 11 vitoriosos.
Como em qualquer agrupamento humano existe uma porcentagem
de indivíduos com aptidões acima da média (assim como de deprimidos
e ansiosos), se aquela seleção fosse estendida para todas
as sétimas séries da rede municipal, na qual existem cerca
de 500 escolas, teria revelado, no mínimo, 50 superdotados.
Estimulados para transformar seu potencial em alguma habilidade,
a probabilidade é que se desenvolvessem acadêmica e profissionalmente.
É óbvio.
Não é óbvio, porém, qual seria o resultado se, em vez de
apoiados para avançar nos estudos, os integrantes desse grupo
permanecessem em escolas de baixa qualidade, não conseguissem
emprego e vivessem em comunidades miseráveis.
Provavelmente, muitos deles usariam sua inteligência e espírito
empreendedor para liderar gangues, seqüestrar, assaltar ou
traficar drogas. Fala-se muito que a criminalidade é conseqüência
de uma série de combinações sociais, culturais e econômicas.
Mas quase nunca se fala que ela também é o resultado perverso
da inteligência.
Nunca vi nenhum teste de inteligência aplicado entre líderes
de gangues, mas o que sempre me chamou a atenção, observando
crianças e adolescentes envolvidos no crime, é uma visível
esperteza e rapidez de raciocínio, apuradas na seleção "natural"
da rua.
O chefe de gangue tem noções de táticas e estratégias que
fariam dele um executivo de empresa, empresário ou governante.
Trabalha-se muito, sob intenso estresse, com os mais variados
riscos, o que exige foco, disciplina e habilidade de gestão
de equipes.
Não estamos apenas desperdiçando talentos de possíveis futuros
músicos, médicos, engenheiros, empresários, mas transformando-os
em inimigos da sociedade, gente que nada constrói, só destrói.
Ou seja, o custo social é dobrado.
Na semana passada, assistimos à mais contundente investigação
já realizada sobre a violência que atinge crianças e adolescentes
no Brasil, com a divulgação, no "Fantástico", das gravações
feitas pelo rapper MV Bill e o produtor Celso Athayde sobre
o tráfico de drogas. É o marco mais importante na cobertura
jornalística sobre a delinqüência juvenil.
O envolvimento dos adolescentes no tráfico de drogas e seu
extermínio ressaltam a mais grave armadilha social brasileira:
os milhões de jovens sem perspectiva. É o preço mais alto
de toda a nossa história de exclusão, de deficiência escolar
e de baixo crescimento econômico. Segundo estatísticas oficiais,
27% dos jovens entre 15 e 24 anos não trabalham nem estudam
em apenas oito regiões metropolitanas. Isso significa 1,7
milhão de desesperançados. Justamente nesse contexto alguns
dos mais empreendedores e mais inteligentes serão recrutados
pelas quadrilhas.
Na semana passada, foram divulgados estudos do Ministério
da Educação e do IBGE dando pistas sobre alguns dos ingredientes
que produzem essa desesperança. Apenas 11% das crianças estão
em creche, os alunos de escolas pública têm aulas mais curtas
e estudam em salas superlotadas. Em 2004, 15 em cada 100 alunos
do ensino médio abandonaram a escola; isso representa 1,4
milhão de cidadãos condenados à baixa escolaridade.
Se em um ínfimo grupo de 51 escolas públicas encontramos
11 superdotados, quantos haveria num universo de 1,7 milhão
de jovens que não trabalham nem estudam? Sempre vale repetir
um magnífico ditado: se você acha que educação custa caro,
tente calcular o preço da ignorância.
Um desses custos apareceu nos vídeos de MV Bill e Celso Athayde
- dos 16 meninos acompanhados nessa investigação, 15 morreram
e o outro está preso. Ou em cenas que não foram divulgadas,
como a de uma menina de nove anos fazendo sexo oral num traficante
para ganhar em troca cocaína.
P.S- Estou cada vez mais convencido de que o problema da
violência é mescla da pobreza com a destruição de laços afetivos
das crianças e dos jovens; essa destruição é o que os remete
para o mundo da invisibilidade. Daí que o desajuste familiar
é uma das bases da violência. Não iremos muito longe sem educar
as famílias, oferecer atenção desde o momento em que a criança
nasce (por isso é tão prejudicial o número baixo de matriculados
na creche), transformar a escola em centro comunitário e garantir
meios de expressão através das mais diversas formas. O próprio
MV Bill é um exemplo: ele sabe que, não fosse a música, poderia
ter sido mais um daqueles meninos assassinados que filmou.
Nunca se produziu no país um plano consistente para evitar
a delinqüência juvenil. Quantos filmes e livros terão de ser
lançados para que se monte um plano articulado em todos os
níveis para enfrentar nossa guerra civil? Lamento informar,
mas só crescimento econômico, geração de empregos e mais repressão
não resolverão, nem remotamente, essa guerra.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
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