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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
13/03/2006
Os pernilongos de Serra

A revista "Fortune" divulgou na quinta-feira passada o ranking dos 793 homens e mulheres mais ricos do mundo, no qual, em apenas um ano, duplicou a presença brasileira. São agora 16 empresários nacionais que, para entrar nessa lista, acumularam um patrimônio pessoal de, no mínimo, R$ 2,3 bilhões. Apesar do requinte e da proteção de suas residências -muitas delas parecendo quartéis-, uma parte desses indivíduos está vivendo um inusitado ataque, comum aos moradores das periferias: o ataque dos pernilongos.

Não estão sozinhos. Os dois habitantes politicamente mais poderosos da cidade de São Paulo -Geraldo Alckmin e José Serra- também estão na mira dos pernilongos que imperam nas noites paulistanas. Graças a variações climáticas e, principalmente, ao descuido da administração pública, o rio Pinheiros vem gerando batalhões de insetos que, sem distinção de raça, cor e classe, operam, resistentes a dedetização, em bairros nobres como Cidade Jardim, Alto de Pinheiros, Morumbi, Real Parque, V. Olímpia e Itaim. Nessas regiões, além do governador e do prefeito, habita parte dos milionários e bilionários brasileiros, alguns deles incluídos no ranking da "Fortune".

Um problema tão insignificante e desprezível como os mosquitos apenas revela que, no cotidiano de todos os indivíduos, sejam ricos ou pobres, uma parcela considerável dos incômodos é provocada por problemas locais, desses de conversas provincianas como os congestionamentos, enchentes, buracos na rua e o medo da violência.

A novidade é que as elites econômicas e intelectuais estão reaprendendo a olhar as suas comunidades e, assim, passam a mudar sua visão política. As indicações desse aprendizado apareceram em pesquisas de opinião pública, concluídas na semana passada, mas mantidas sob reserva.

Entre os paulistanos de maior escolaridade e poder aquisitivo, segundo os levantamentos concluídos até a sexta-feira passada, aos quais esta coluna teve acesso, há uma rejeição maior do que se imagina à idéia de José Serra deixar a prefeitura.

Perguntaram aos entrevistados se Serra faria bem ou mal em deixar o cargo antes de terminado o mandato. A resposta entre os eleitores mais ricos e escolarizados foi a seguinte: quase oito em cada dez eleitores com renda e formação escolar mais altas disseram que ele faria mal. Contabilizando toda a amostra, a média foi pouco menos de seis contra para três a favor. Há várias traduções possíveis para esses números. Uma delas é a da noção, tão debatida em escala planetária, de que, na era do global e virtual, prospera ao mesmo tempo o culto ao local. Não é uma contradição, mas um complemento.

Outra tradução é a de que as pessoas começam a dizer, sem rodeios, que a cidade deve vir em primeiro lugar ou, no mínimo, merece mais atenção. Essa tendência sugere uma nova visão sobre as relações de poder no Brasil, abalando a tradicional reverência ao poder central. É, em suma, apenas um aprofundamento da democracia: as pessoas percebem melhor onde estão seus interesses e sabem traduzi-los em demandas políticas. Exatamente nesse contexto cresce a demanda por transparência e maior controle do setor público.

Assim se entende uma série de fatos e debates que estão marcando o país. Incluem-se aí a investigação sobre os gastos de campanhas eleitorais (a maior de que se tem notícia em toda a história do país), o protesto que brecou, em 2005, o aumento de imposto, a gritaria bem-sucedida contra a elevação do salário dos deputados, a derrubada de um presidente da Câmara e o risco de cassação de outro presidente da Casa. Também explica o barulho causado porque um general fez atrasar um vôo.

Na semana passada, foi lançado um movimento, batizado de "Quero mais Brasil", liderado por empresários e líderes da sociedade civil, exigindo melhor gestão de recursos públicos. Uma de suas bandeiras (ótima, aliás) é a proposta para que consumidor saiba, logo ao comprar o produto, quanto se paga de imposto.

Tudo isso é muito mais relevante para o nosso futuro político do que o jogo das candidaturas. Os cidadãos estão mais atentos e aprendendo a defender melhor seus interesses. Isso vai dos pernilongos até os impostos. A melhor novidade é a percepção de que não se muda uma nação se não for mudado primeiro o que está ao nosso lado. Isso indica a percepção de que menos Brasília significa mais Brasil.

P.S. - Por falar em assuntos locais, teremos, a partir da próxima semana, a inauguração de um prédio que, por seu simbolismo, é histórica. Com uma parceria entre o setor público e a iniciativa privada, a estação da Luz passa a abrigar o primeiro museu dedicado à língua portuguesa. Aquela região foi, inicialmente, o marco da riqueza para a formação de uma metrópole, onde se receberam os imigrantes com suas mais diferentes línguas. Tornou-se depois, com o apelido de "cracolândia", o símbolo da decadência. Usando os mais requintados recursos tecnológicos, agora vira um espaço de culto da palavra que, por ser a base da educação, é também a base da riqueza de uma nação. É mais um sinal de que São Paulo, apesar de todos os seus pernilongos, de todos os tamanhos e formas, não desiste -e, apesar de todos os pesares, não pára de melhorar.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

Veja a opinião dos nossos leitores a respeito da candidatura de Serra

   
 
 
 

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