A revista "Fortune" divulgou na
quinta-feira passada o ranking dos 793 homens e mulheres mais
ricos do mundo, no qual, em apenas um ano, duplicou a presença
brasileira. São agora 16 empresários nacionais que, para entrar
nessa lista, acumularam um patrimônio pessoal de, no mínimo,
R$ 2,3 bilhões. Apesar do requinte e da proteção de suas residências
-muitas delas parecendo quartéis-, uma parte desses indivíduos
está vivendo um inusitado ataque, comum aos moradores das
periferias: o ataque dos pernilongos.
Não estão sozinhos. Os dois habitantes politicamente mais
poderosos da cidade de São Paulo -Geraldo Alckmin e José Serra-
também estão na mira dos pernilongos que imperam nas noites
paulistanas. Graças a variações climáticas e, principalmente,
ao descuido da administração pública, o rio Pinheiros vem
gerando batalhões de insetos que, sem distinção de raça, cor
e classe, operam, resistentes a dedetização, em bairros nobres
como Cidade Jardim, Alto de Pinheiros, Morumbi, Real Parque,
V. Olímpia e Itaim. Nessas regiões, além do governador e do
prefeito, habita parte dos milionários e bilionários brasileiros,
alguns deles incluídos no ranking da "Fortune".
Um problema tão insignificante e desprezível como os mosquitos
apenas revela que, no cotidiano de todos os indivíduos, sejam
ricos ou pobres, uma parcela considerável dos incômodos é
provocada por problemas locais, desses de conversas provincianas
como os congestionamentos, enchentes, buracos na rua e o medo
da violência.
A novidade é que as elites econômicas e intelectuais estão
reaprendendo a olhar as suas comunidades e, assim, passam
a mudar sua visão política. As indicações desse aprendizado
apareceram em pesquisas de opinião pública, concluídas na
semana passada, mas mantidas sob reserva.
Entre os paulistanos de maior escolaridade e poder aquisitivo,
segundo os levantamentos concluídos até a sexta-feira passada,
aos quais esta coluna teve acesso, há uma rejeição maior do
que se imagina à idéia de José Serra deixar a prefeitura.
Perguntaram aos entrevistados se Serra faria bem ou mal em
deixar o cargo antes de terminado o mandato. A resposta entre
os eleitores mais ricos e escolarizados foi a seguinte: quase
oito em cada dez eleitores com renda e formação escolar mais
altas disseram que ele faria mal. Contabilizando toda a amostra,
a média foi pouco menos de seis contra para três a favor.
Há várias traduções possíveis para esses números. Uma delas
é a da noção, tão debatida em escala planetária, de que, na
era do global e virtual, prospera ao mesmo tempo o culto ao
local. Não é uma contradição, mas um complemento.
Outra tradução é a de que as pessoas começam a dizer, sem
rodeios, que a cidade deve vir em primeiro lugar ou, no mínimo,
merece mais atenção. Essa tendência sugere uma nova visão
sobre as relações de poder no Brasil, abalando a tradicional
reverência ao poder central. É, em suma, apenas um aprofundamento
da democracia: as pessoas percebem melhor onde estão seus
interesses e sabem traduzi-los em demandas políticas. Exatamente
nesse contexto cresce a demanda por transparência e maior
controle do setor público.
Assim se entende uma série de fatos e debates que estão marcando
o país. Incluem-se aí a investigação sobre os gastos de campanhas
eleitorais (a maior de que se tem notícia em toda a história
do país), o protesto que brecou, em 2005, o aumento de imposto,
a gritaria bem-sucedida contra a elevação do salário dos deputados,
a derrubada de um presidente da Câmara e o risco de cassação
de outro presidente da Casa. Também explica o barulho causado
porque um general fez atrasar um vôo.
Na semana passada, foi lançado um movimento, batizado de
"Quero mais Brasil", liderado por empresários e líderes da
sociedade civil, exigindo melhor gestão de recursos públicos.
Uma de suas bandeiras (ótima, aliás) é a proposta para que
consumidor saiba, logo ao comprar o produto, quanto se paga
de imposto.
Tudo isso é muito mais relevante para o nosso futuro político
do que o jogo das candidaturas. Os cidadãos estão mais atentos
e aprendendo a defender melhor seus interesses. Isso vai dos
pernilongos até os impostos. A melhor novidade é a percepção
de que não se muda uma nação se não for mudado primeiro o
que está ao nosso lado. Isso indica a percepção de que menos
Brasília significa mais Brasil.
P.S. - Por falar em assuntos locais, teremos, a partir da
próxima semana, a inauguração de um prédio que, por seu simbolismo,
é histórica. Com uma parceria entre o setor público e a iniciativa
privada, a estação da Luz passa a abrigar o primeiro museu
dedicado à língua portuguesa. Aquela região foi, inicialmente,
o marco da riqueza para a formação de uma metrópole, onde
se receberam os imigrantes com suas mais diferentes línguas.
Tornou-se depois, com o apelido de "cracolândia", o símbolo
da decadência. Usando os mais requintados recursos tecnológicos,
agora vira um espaço de culto da palavra que, por ser a base
da educação, é também a base da riqueza de uma nação. É mais
um sinal de que São Paulo, apesar de todos os seus pernilongos,
de todos os tamanhos e formas, não desiste -e, apesar de todos
os pesares, não pára de melhorar.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
Veja
a opinião dos nossos leitores a respeito da candidatura
de Serra
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