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REFLEXÃO


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Folha de S.Paulo
06/03/2006
Sociedade incivil

Uma pesquisa ainda inédita revela que 46% dos habitantes da cidade de São Paulo, entre 18 e 45 anos, das classes A, B e C, foram vítimas ou tiveram alguém próximo (parente, amigo, namorado, vizinho, colega de trabalho) que sofreu um assalto em 2005.

Entre as vítimas, 36% mudaram de atitude e buscaram mais proteção. Passaram a ficar ainda mais tensas e desconfiadas, sentindo-se vigiadas. Uma parte delas admitiu danos psicológicos (insônia e ansiedade, por exemplo).

Note que estamos falando das vítimas em apenas 12 meses. Isso é o que sustenta a sensação generalizada de vulnerabilidade e a produção em série de cidadãos amedrontados e ansiosos. Na lógica da sociedade "incivil", nem mesmo os cisnes do parque Ibirapuera, como se descobriu na semana passada, conseguiram se livrar das quadrilhas de assaltantes.

Essa sensação de vulnerabilidade psicológica, detectada pela pesquisa da CPM Research, sob encomenda da Agência Internacional de Paz (Inpaz), é um dos ingredientes em torno da possível candidatura José Serra à Presidência - e ajuda a explicar por que a maioria dos seus eleitores, como informam levantamentos de opinião, gostaria que ele terminasse seu mandato de prefeito.

A sociedade "incivil" vai muito além dos assaltos. Cometem-se cem sequestros relâmpagos por mês. Motoboys estirados no chão são parte da paisagem. Nesse período de chuvas, a vulnerabilidade se estende às enchentes que paralisam a cidade e tornam os congestionamentos ainda mais infernais.

Para a maioria do eleitorado paulistano, a eleição de Serra significou a oportunidade de colocar na prefeitura um político com status presidencial justamente para tentar amenizar os níveis de caos e degradação municipal. Daí ter vencido uma acirrada disputa com Marta Suplicy, que, se teve o demérito de deixar as contas em desordem e promover obras às pressas, lançou em sua gestão programas sociais relevantes.
Mas a candidatura de Serra está, neste momento, apenas aumentando a sensação de vulnerabilidade, ao dar o recado de que a cidade não é sua principal preocupação e que, involuntariamente ou não, lhe serviu de sala de espera. O Ibope revelou, na semana passada, que o número de paulistanos dispostos, neste momento, a levá-lo a Brasília é muito menor dos que os que avaliam como ótima ou boa sua administração.

No jogo de barganhas, a cidade está se reduzindo ao status de moeda de troca. Ganhar a prefeitura, por meio do vice-prefeito, é uma das razões para o apoio da cúpula do PFL à candidatura de Serra. Entrar aqui, dizem vários líderes do PFL, é um projeto estratégico do partido para garantir seu fortalecimento no futuro.

Não se sabe, numa eventual mudança na prefeitura, quais programas serão mantidos e se o sucessor terá a habilidade de tocar uma administração com problemas tão graves e urgentes, que dependem de articulação federal, estadual e municipal. Não se sabe como reagiria um prefeito substituto como Gilberto Kassab, que tomaria posse enfraquecido e obrigado rapidamente a ganhar popularidade. Isso significaria que medidas impopulares e importantes serão esquecidas? Especule-se a favor dele que talvez seja melhor um sucessor motivado, desesperado para mostrar serviço, do que um prefeito amargurado e desmotivado, para quem a cidade seria um prêmio de consolação.

Na visão de Serra, há algo maior em jogo. Está em jogo um projeto de nação, na qual se estimule o crescimento econômico e, com isso, São Paulo só teria a ganhar. Serra acredita que, diante do desafio nacional, valeriam assim todos os riscos e decepções. Acha-se capaz de abrir caminhos para o país gerar mais empregos e com mais velocidade. Uma vez vitorioso, estaria sempre de olho na cidade, ajudando-a a partir de Brasília. Gilberto Kassab seria quase uma espécie de ministro. Ele disse, em conversas reservadas, que aceitaria esse papel. "Muda o maestro, mas permanece a orquestra", comentou.

Há, porém, mais hipóteses a serem consideradas; isso, claro, supondo que Alckmin terá virado purê de chuchu, o que é ainda apenas uma hipótese, descartada, aliás, pelo governador. Pesquisas na semana passada reafirmaram a melhoria eleitoral de Lula e indicaram que, até agora, Marta Suplicy é a candidata mais forte ao governo estadual. Como seria uma Marta governadora lidando com uma prefeitura nas mãos de adversários? Lembre-se que, em 2008, a sucessão municipal já estará na agenda dos políticos. E, se Serra perder, como ficarão o PSDB e, por sua vez, os projetos na cidade?

Saindo do campo ilimitado das especulações, há um detalhe factual -e revelador da vulnerabilidade. Em março de 2005, Serra explicava como iria cobrir os rombos orçamentários, atacando os desperdícios. Passado um ano, ele se vê obrigado a explicar por que está gastando tantos recursos em publicidade que, obviamente, parecem um desperdício- exceto é óbvio, para fins eleitorais.

PS - Vamos supor o melhor cenário para Serra. Talvez ele saia mesmo candidato e seja indicado pelo PSDB, vencendo Geraldo Alckmin. Talvez ganhe a eleição contra Lula e seja um bom presidente, fazendo as reformas necessárias e impulsionando o crescimento no país. Talvez até muitos dos que resistiram à sua candidatura venham a se arrepender. Mesmo com tudo isso, uma coisa não é "talvez": ele não terá ficado à altura dos desafios da cidade de São Paulo. Será mais um personagem de nossa vulnerável sociedade incivil, onde, em geral, ser prefeito é apenas um trampolim.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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