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O
inimigo mora ao lado
Os baixos salários
estão obrigando soldados, cabos e sargentos a morar em favelas
ou áreas de risco. Como praticamente todos os morros do Rio
e as favelas de São Paulo estão dominados pelo tráfico,
policiais e bandidos são vizinhos. Em vez de se orgulharem
das fardas, escondem a identidade. Acuados no próprio lar,
vivem no anonimato. Em vez da disciplina dos quartéis, seguem
as leis do tráfico. A situação cria um cenário
insólito: os Policiais Militares, treinados para defender
a ordem e proteger o cidadão, têm medo dos seus próprios
vizinhos.
Os policiais
fingem não ser policiais. Se descobertos, morrem. Com isto,
passam por situações absurdas: têm que piscar
a luz do carro e dizer a senha para entrar na favela; permitem que
o telhado da casa sirva de "olheiro" para os traficantes;
pedem autorização para os gerentes da boca-do-fumo
para se inscrever na PM; entram e saem do batalhão à
paisana; são obrigados a lavar suas fardas na casa de amigos
e parentes ou, quando muito, lavam a roupa dentro de casa e usam
a parte de trás da geladeiras como varal.
O salário médio dos PMs é de R$ 400, o que
obriga a maioria deles a fazer bicos. Por isto moram ao lado do
inimigo. A associação dos PM até já
construiu casas de trânsito para abrigar os que são
descobertos pelos traficantes. E ainda assinou um contrato com a
Caixa Econômica Federal para facilitar a aquisição
da casa própria para os policiais, com juros de 6% ao ano.
No Rio, 62 PMs foram assassinados pelo tráfico. Cerca de
80% deles moram em áreas de risco, ou seja, favelas dominadas
pelo tráfico. A estatística mostra que 1.800 PMs são
deficientes físicos por causa da luta com o tráfico.
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Medo
fardado
Se não
fosse a interferência da família, o soldado Carlos*,
um carioca de 23 anos, já estaria morto. Traficantes da favela
Rato Molhado, em Higienópolis, zona norte do Rio de Janeiro,
invadiram sua casa para executá-lo, depois de descobrirem
que ele era policial militar e não guarda municipal. Sua
profissão foi descoberta depois de uma ocupação
feita na favela para desbaratar o tráfico. Carlos, que servia
na Barra da Tijuca foi deslocado para o 3º BPM, no Méier,
zona norte, para participar da ocupação. Desde então,
sua vida virou um inferno.
A família
da esposa salvou sua pele garantindo aos traficantes que ele sairia
da favela. Carlos então fugiu com a mulher e a filha recém-nascida.
Por não terem para onde ir, acabaram dormindo dois dias no
carro estacionado em frente ao batalhão, no Méier.
Na quarta-feira 12, o tenente-coronel Jorge Romeu do Nascimento,
do 3º BPM, solicitou oficialmente a ajuda da Associação
dos Ativos, Inativos e Pensionistas das Políticas Militares
e Corpo de Bombeiros (Assinap).
O drama que
Carlos está vivendo já virou rotina na vida dos PMs
nas grandes cidades. Os filhos do soldado José*, 39 anos,
por exemplo, são chamados na favela Vila Vintém, em
Realengo, zona oeste do Rio, de X-9. A gíria é usada
para identificar os delatores. As duas crianças, menores
de dez anos, não conseguem reagir à hostilidade dos
vizinhos e caem em prantos. O telhado da casa do soldado Carlos*,
42 anos, uma moradia simples no alto do Gogó da Ema, outra
favela, já virou posto de observação dos traficantes.
É de lá que os "olheiros" do Terceiro Comando
tomam conta de quem entra e sai da favela. Carlos entra mudo e sai
calado de casa. Finge que não é da polícia
para não morrer. No seu telhado, o tráfico é
liberado. Já o recruta Manoel*, 28 anos, morador de um bairro
popular em Campo Grande, zona oeste, antes de se inscrever na PM
achou por bem pedir licença aos gerentes da boca-de-fumo,
a 100 metros da sua casa.
Com baixos salários, soldados, cabos e sargentos são
obrigados a morar em favelas ou áreas de risco. Como praticamente
todos os morros do Rio estão dominados pelo tráfico,
policiais e bandidos são vizinhos. A situação
cria um cenário insólito. Os PMs, treinados para defender
a ordem e proteger o cidadão, têm medo dos vizinhos.
Em vez de se orgulharem das fardas, escondem a identidade. Acuados
no próprio lar, vivem no anonimato e, em vez da disciplina
dos quartéis, seguem as leis do tráfico.
O Rio não
é o único cenário desse absurdo. São
Paulo vive situação idêntica. Foi a falta de
dinheiro que levou o policial César* a mudar-se para o Jardim
Ângela, favela na zona sul da capital. A família ainda
não tinha se acostumado com a nova moradia quando o PM foi
baleado na perna por um encapuzado. O tiro era a senha para indicar-lhe
que não era bem-vindo. Mas a falta de dinheiro obrigou-o
a continuar morando lá. Depois do tiro, vieram os bilhetes.
"Avisem ao gambé (policial na gíria do tráfico)
que vamos descobrir o barraco dele, invadir, matar ele, a mulher
e as suas crias. E quem souber onde ele mora e não nos avisar
vai morrer também." Foram sete anos de tortura silenciosa.
Todos em casa eram proibidos de comentar a real identidade de César*,
que trabalha no patrulhamento de rua.
A situação
no Rio já levou o general Alberto Cardoso, chefe do Gabinete
Militar da Presidência da República, a classificar
como terrorismo os ataques a policiais. No ano passado, 62 PMs foram
assassinados no Rio pelo tráfico. Até a terça-feira
18, a Assinap já tinha recebido 29 pedidos de socorro. "São
policiais que chegam aqui desesperados pedindo abrigo porque fugiram
de suas casas para não serem eliminados pelo tráfico",
conta seu presidente, Miguel Cordeiro. A entidade construiu duas
casas de trânsito, em Niterói, para abrigar os PMs
sem teto. E ainda assinou um contrato com a Caixa Econômica
Federal para facilitar a aquisição da casa própria
para os policiais, com juros de 6% ao ano.
"Estamos
passando por momentos difíceis. Não é só
o PM que vive com medo", admite o tenente-coronel Luiz Soares
de Oliveira, comandante do 23º Batalhão da PM, no Leblon.
Em seu batalhão, os oficiais entram e saem à paisana.
Ninguém leva a farda para casa. Usam a lavanderia do batalhão
ou a casa de amigos e parentes que moram longe das favelas. "Ou
então a farda é lavada dentro de casa e a parte de
trás da geladeira é usada como varal", conta.
Segundo o coronel, cerca de 80% de seus policiais moram em áreas
de risco, ou seja, favelas dominadas pelo tráfico.
Para abrigar
PMs e parentes que habitam áreas de risco, o secretário
de Segurança Pública do Rio, Josias Quintal, chegou
a pensar em construir prédios de 50 a 80 apartamentos dentro
dos batalhões. A idéia é polêmica. O
presidente da Associação de Cabos e Soldados da Polícia
Militar, o sargento Vanderlei Ribeiro, é contra. "O
governo deveria ter a decência de pagar salários dignos.
Temos o direito de escolher onde morar", esbraveja. O salário
médio dos PMs é de R$ 400, o que obriga a maioria
deles a fazer bicos como segurança particular.
Indiferente
à retórica oficial de que segurança é
prioridade número um do governo estadual, o tráfico
está cada vez mais ousado. Em alguns pontos da cidade as
falsas blitze são corriqueiras. Bandidos disfarçados
param o trânsito e simulam uma operação policial.
"Morro de medo de ser pego fardado pelos traficantes numa blitz",
admite um soldado do 23º BPM. Um major da PM contou que pisca
os faróis ao subir o morro onde mora. É obrigado a
dizer a senha "sou morador" para os vigias do tráfico
autorizarem sua passagem. Ninguém desconfia de seu ganha
pão. Outro policial conta que onde mora o toque de recolher
é às 22 horas. "Subir ou descer depois disso
é uma ação de alto risco."
O soldado José,
aquele cujos filhos são identificados como X-9 na favela,
não visita sua avó paterna há anos. "Tenho
saudades, mas não posso visitá-la. Nem meus filhos."
Um primo seu, traficante, o proibiu de aparecer por lá. Um
colega de batalhão foi expulso do morro depois que os bandidos
descobriram sua identidade. "Perdi minha casa, mas pelo menos
não perdi a vida", conforma-se o soldado Joaquim*. Traumatizado,
ele passou a tomar dois calmantes por dia. Perdeu o porte de arma,
não dorme direito e ainda não sabe quando voltará
a viver sem medo. "Talvez nunca mais."
O cabo Ricardo
Montalbo, 32 anos, entrou na PM paulista em 1990 e, há três
anos, ficou tetraplégico ao receber um tiro no pescoço.
Numa madrugada de agosto de 1993, estava em uma viatura na divisa
de Francisco Morato, junto com outro policial. No patrulhamento,
cruzaram com o tenente Mailar, que voltava para casa. Ao avistar
o carro da polícia, um homem entrou correndo num matagal.
Os PMs foram atrás. O tenente Mailar foi morto com uma machadada
e Montalbo ficou tetraplégico. Mais um na estatística
que já conta 1.800 PMs deficientes físicos no Estado.
O soldado Renato*
tem 37 anos, está na PM há 18 e faz patrulhamento
da Força Tática em uma cidade da grande São
Paulo. "Os policiais militares estão muito apreensivos.
Os bandidos estão mais bem armados do que a polícia.
O colete à prova de balas deles é melhor e mais resistente
do que o da PM. Enquanto a gente porta revólver 38, eles
exibem as potentes pistolas 9 milímetros e 45, armas proibidas
para o nosso uso," compara. O soldado revela: "As áreas
da periferia, onde a criminalidade se destaca, estão descobertas.
Muitos policiais estão evitando chegar no local do crime
com rapidez, pois quem fere ou mata um bandido é transferido
de sua área para a região central e isso acarreta
prejuízo, como o afastamento da família e a perda
do bico", afirmou o PM.
Casado, pai
de duas meninas, Renato faz uma reflexão sobre a realidade
pouco animadora. "A PM não está desenvolvendo
seu papel constitucional, que é atuar de forma ostensiva,
preventiva e repressiva no combate ao crime." E dá nome
aos culpados: "O governador, o secretário de Segurança
Pública e a cúpula da PM estão concentrando
o maior número de policiais e viaturas nas regiões
centrais, aquelas de maior poder aquisitivo, só para dar
a impressão de que a polícia está nas ruas.
Enquanto isso, a periferia, onde a criminalidade é maior,
está descoberta." O quadro de medo e incompetência
assumido por quem deveria enfrentar os criminosos é assustador.
Já passou da hora de os governos acharem uma solução,
revendo toda a política de segurança pública.
(IstoÉ)
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