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CIÊNCIA


O vício do perigo

Atletas podem depender de adrenalina, dopamina e endorfinas, base bioquímica da sensação de prazer

 

Lelo Jachimowicz/Divulgação
Fábio Shoel, 22, salta de guindaste a 40 m de altura, sustentado por uma corda de bungee jump formada por 3.000 fios elásticos


LEILA SUWWAN DE FELIPE
DA EQUIPE DE TRAINEES


“Com certeza sou viciado em adrenalina e endorfinas”, diz Elias Shoel, 26, instrutor de bungee jump. “99,9% das pessoas saem do salto sorrindo, tranquilas, simpáticas, ‘dopadas’ de alegria.”
Shoel é suspeito para falar, mas a ciência lhe dá a razão. A sensação de bem-estar deixa uma memória química no corpo do praticante, que passa a buscá-la com frequência e até a depender dela.

“Esses esportes radicais podem ser considerados um vício. A pessoa precisa, necessita buscar uma nova emoção ou desafio para se sentir bem”, afirma o endocrinologista Rogério Alvarenga.

Esse vício está diretamente ligado a certos neurotransmissores, substâncias liberadas e absorvidas por neurônios, que possibilitam a comunicação entre eles.

O principal deles é a dopamina, neurotransmissor ativo no “circuito do prazer”. Esse circuito determina o que os cientistas chamam de recompensa, um mecanismo de aprendizado para que as pessoas repitam atividades prazerosas, essenciais para a vida.

Diante de sexo e boa comida, por exemplo, um derramamento de dopamina liga as regiões do cérebro que cuidam das emoções e dos sentidos. O cérebro aprende que tais experiências são prazerosas e se condiciona a repeti-las.

O resultado, porém, nem sempre é positivo. Pode levar, por exemplo, à compulsão. George Koob, neurobiólogo da Universidade da Califórnia em San Diego, estudou a auto-administração de dopamina e endorfina por meio de impulsos elétricos em ratos.

“As endorfinas podem levar à dependência e são auto-administradas ao cérebro por animais”, disse à Folha. Koob explica que um rato com acesso ilimitado à estimulação cerebral de dopamina o fará indefinidamente.

Apesar de condicionáveis, o corpo e o cérebro não são ingênuos. Um salto de pára-quedas sempre será percebido por uma pessoa, concretamente, como uma situação de perigo. Medo e excitação são inevitáveis, consequências do preparo do corpo, desencadeadas pela adrenalina.

Para desempenhar um esporte ou um trabalho com sucesso, a associação entre perigo e prazer pode ser deliberada. O vínculo é então mediado pela própria adrenalina ou pelas endorfinas, neurotransmissores que atuam para diminuir o limiar de dor.

Segundo o neurobiólogo David McCobb, da Universidade Cornell (EUA), “é concebível” um “vício” em adrenalina. “Uma pessoa sabe o que lhe causa bem-estar, e a adrenalina pode ser muito emocionante. Ela não precisa compreender os mecanismos moleculares para criar o hábito de ativar o sistema”, disse à Folha
.
As endorfinas têm um resultado similar. Segundo Alvarenga, quando um atleta sente dor, ocorre a liberação de endorfinas, com ação “dezenas de vezes mais potente que a da morfina”.

“Em seguida vem a sensação de bem-estar e a dor desaparece. Daí em diante, quanto mais esforço fizer, mais dor terá (mas já não sente mais), e mais endorfina será liberada”, diz. Com isso, a pessoa que está potencialmente em risco, ou machucada, está sendo estimulada para seguir adiante.

Síndrome de abstinência
“A gente, além de fazer rapel, também salta de pára-quedas, explora cavernas, faz mountain bike e pula de bungee. Não sei se pode ser considerado um vício em adrenalina, mas a galera está sempre atrás de fortes emoções, todo final de semana”, diz Gustavo Barreto, atleta radical de Brasília.

Há quem considere “vício” uma palavra forte demais. Koob diz que reforço de um comportamento não necessariamente implica vício. Em humanos, por definição, afeta o funcionamento social e ocupacional. “Não se pode medir isso em ratos.”

Simon Brachet, 27, praticante de hydrospeed, conta que não conseguiu descansar por dois meses, quando sofreu sete fraturas. “Fico bravo, irritado. Não consigo ficar parado uma hora ou duas. Preciso fazer alguma coisa.”

Alvarenga entende que isso se parece com uma “síndrome de abstinência”, que, no vício em drogas, pode causar insônia, contrações involuntárias e náusea. De forma mais moderada, ele diz que alguns pacientes entram em depressão por ficarem inativos, sem receber os estímulos da adrenalina, ou da dopamina.

Os pequenos booms de dopamina podem de fato “viciar”, no sentido bioquímico. O neurologista Milberto Scaff, do Hospital das Clínicas (SP), explica que o “vício” do neurônio se chama habituação. A pessoa ficaria acostumada com certo nível de dopamina, o que diminui sua sensibilidade ao efeito do neurotransmissor.

“Isso pode levar a pessoa a buscar emoções mais fortes, para obter o mesmo nível de excitação nas regiões do cérebro onde atua a dopamina.” Alvarenga concorda: “As pessoas vão ao máximo do desafio. Para elas, é uma questão de necessidade”.



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