Jornalista sobre arquivo de Allen: 'ele é obcecado por meninas adolescentes'

Crédito: Eric Gaillard - 11.mai.16/Reuters Director Woody Allen poses during a photocall for the film "Cafe Society" out of competition, before the opening of the 69th Cannes Film Festival in Cannes, France, May 11, 2016
Woody Allen durante a apresentação do filme 'Café Society' no Festival de Cannes, em maio de 2016

RICHARD MORGAN
ESPECIAL PARA O "WASHINGTON POST"

Woody Allen está terminando um filme novo. Brincadeira; ele não faz filmes novos. O que ele está editando agora –"A Rainy Day in New York" (um dia chuvoso em Nova York), sobre um triângulo amoroso em uma universidade– poderia, como qualquer de seus outros filmes, levar o título "Mulher Objetificada por um Homem".

Na opinião do diretor, esse é o pináculo da arte, sua mais verdadeira vocação e mais alto propósito. Especialmente se envolver mulheres jovens, compelidas a relacionamentos com homens medíocres, simplesmente pela gravidade da obsessão desses homens por elas.

Sei disso porque vi toda a carreira dele de perto ao ler todos os seus rascunhos e anotações, avaliando todos os traços, psicológicos e físicos, que ele deixou espalhados pelo chão de sua sala de edição mental –um arquivo que abarca 57 anos e 56 caixas, mantido por Allen desde 1980 na Biblioteca Firestone da Universidade de Princeton (onde ele não estudou). De acordo com a equipe da ala de livros raros da biblioteca, sou a primeira pessoa a ler a coleção de Allen –conhecida como "Woody Papers" (os papeis de Woody)– do começo ao fim, sem deixar nada de fora.

Uma misoginia repetitiva escorre de seus escritos. Allen, indicado para 24 Oscars, jamais precisou de outras ideias que não a de um homem lascivo e sua bela conquista –conceito em torno do qual ele fez filmes sobre Paris, Roma, Barcelona, Manhattan, jornalismo, viagens no tempo, a revolução comunista, homicídio, escrever romances, um jantar de Ação de Graças, Hollywood e muitas outras coisas–, porque uma ideia bastou para uma carreira muito frutífera.

O arquivo de Allen é um jardim de eliminações terrenas –décadas de anotações, histórias e esboços que o prolífico cineasta exilou, por qualquer que seja o motivo, para a terra de sombras que separa a dedicação plena da posse insípida.

Seus roteiros são em muitos casos freudianos e neles, em geral, Allen (ou uma figura que o representa) se apega quase religiosamente a uma fórmula: um relacionamento à beira do fracasso é lançado ao caos pela introdução de um novo e atraente elemento externo, quase sempre uma mulher jovem. Em alguns casos isso produz pérolas como "Ponto Final - Match Point" (2005), mas não é comum que isso aconteça.

O trabalho de Allen é planamente grosseiro. O que se vê em todas as caixas é uma obsessão vívida e insistente com meninas e mulheres jovens. Há o personagem "rico, educado e respeitado" em um conto, "By Destiny Denied: Incident at Entwhistle's" (negado pelo destino: incidente no Entwhistle's), que vive com uma mulher "indiana" de 21 anos. Primeiro, as revisões de Allen reduzem a idade dela para 18 anos, e depois a duplicam, literalmente, para duas jovens de 18 anos.

Em uma proposta não realizada para TV, há uma menina de 16 anos descrita como "uma loira vistosa e sexy em um vestido de festa decotado e com uma longa fenda lateral". Há a menina de 17 anos de outro conto, "Consider Kaplan" (considere Kaplan), por quem seu vizinho, de 53 anos, se apaixona durante o percurso de um andar no elevador do prédio em que vivem na Park Avenue.

Há a universitária de "Rainy Day" (dia chuvoso), que "não deveria ter 20 ou 21 anos, e sim 17 ou 18 – mas 18 parece melhor". O roteiro inclui um universitário mas não dá qualquer descrição de sua idade. Outro dos personagens masculinos de Allen, no rascunho de um conto de 1977 para a revista "New Yorker" –"The Kugelmann Episode" (o episódio Kugelmann)–, é um sujeito de 45 anos fascinado pelas universitárias do City College de Nova York. À margem dos diálogos desse personagem, Allen anotou, e depois riscou, "c'est moi" –"sou eu".

A publicista do cineasta, Leslee Dart, não respondeu a diversos pedidos de comentários para este artigo. Recluso por natureza, Allen fez uma queixa sobre o momento Weinstein, alertando a BBC sobre uma "atmosfera de caça às bruxas, uma atmosfera de Salem, na qual todo cara em um escritório que pisque para uma mulher subitamente terá de contratar um advogado". Ele parece acreditar que colegas de trabalho piscam uns para os outros o tempo todo.

Mas espere: Allen criou papéis maravilhosos para mulheres! Bem, nem tanto. O fato de que os trabalhos dele tenham valido tantos Oscars e indicações para as atrizes de seus filmes –Penélope Cruz, Rebecca Hall, Mariel Hemingway, Diane Keaton, Geraldine Page, Maureen Stapleton, Dianne Wiest– é só um truque de repetição: os troféus de Allen têm troféus.

Allen usou Keaton e as demais da mesma maneira que Harvey Weinstein usou Meryl Streep: uma isca para o Oscar, brilhante o suficiente para cegar as aspirantes ao lado sombrio do cineasta, ainda que algumas delas tenham reconhecido a escuridão e decidido participar mesmo assim.

Quando a revista "Billboard" perguntou a Selena Gomez, que passou por cinco testes para entrar em "Rainy Day", se ela havia considerado o passado de Allen antes de aceitar o papel –presumivelmente em referência às acusações de que ele abusou uma das filhas de sua namorada e iniciou um relacionamento impróprio com outra–, ela respondeu: "Isso é, sim, algo que tive de encarar e discutir. Dei um passo atrás e pensei: 'Nossa, o universo funciona de formas interessantes'". Kate Winslet justificou sua participação em "Roda Gigante" (2017) dizendo: "Eu não sei, realmente, de coisa alguma, e se alguma parte é verdade ou mentira. Depois de pensar bem a respeito, você deixa essa coisa de lado e simplesmente trabalha com a pessoa".

Em "Rainy Day", Roland Polland, um cineasta fictício, confessa a uma jovem universitária: "Eu não corri riscos porque a deusa piranha do sucesso abriu as pernas em meu cérebro". Mas esse é Roland Polland, não Woody Allen. O "c'est moi" está sempre rasurado. Ele é Alvy Singer. Ele é Moses Rifkin. Ele é Isaac Davis. Ele é Sandy Bates. Ele é Zelig.

Em um projeto extremamente revelador que ele jamais realizou, Allen parecia mostrar seu verdadeiro eu. "The Filmmaker" (o cineasta) é um roteiro coescrito com Marshall Brickman no final dos anos1960 ou começo dos anos 1970. É sobre um documentarista fracassado que ganha a vida filmando pornografia "como Fellini", mas só porque ele é "uma espécie de gênio do cinema que precisa de dinheiro".

O nome desse cineasta fictício? Woody Allen. O falso Woody é noivo de Susan, que trabalha no Museu de Arte Moderna de Nova York como vendedora de livros de arte. Seu emprego e seu interesse por música fazem de Susan, ostensivamente, uma intelectual –ou ao menos uma pessoa culta– o que sela o destino dela aos olhos do protagonista. O relacionamento é frio. Um dia, enquanto filma em um instituto psiquiátrico, o falso Woody conhece Jennifer, "uma garota". Ela é esquizofrênica.

O falso Woody se apaixona por Jennifer da única maneira pela qual o verdadeiro Woody e seu coautor sabem como escrever: à primeira vista, de forma cósmica, instintiva, esmagadora e, por fim, –como se isso fosse lisonjeiro– obsessivamente, no moldes do sujeito de 53 anos no elevador, que termina mandando um bilhete romântico à sua vizinha de 17 anos.

O conteúdo desse bilhete é instrutivo quanto à maneira pela qual Allen encara o processo de cortejar alguém e, em termos criativos, quanto à maneira pela qual ele entende que a química se forma entre dois personagens. O bilhete diz, na íntegra: "Eu a vi apenas rapidamente outro dia e não parei mais de pensar em você. Embora tenhamos dividido apenas uma viagem casual e passageira de elevador –um andar, para ser exato–, temo que minha vida nunca mais será a mesma. Por favor, tome um drink comigo numa noite esta semana. Moro na cobertura. Imploro que você não diga não. Se por um motivo ou outro você nunca compartilhe meus sentimentos então [sic] o pior que você sofrerá será me ouvir dizer o quão adorável você é pela duração de um único martíni".

Embora a idade mínima para consumo de álcool tenha sido elevada de 18 para 21 anos em 1986, em qualquer momento da vida de Allen teria sido ilegal para um homem adulto oferecer um martíni para alguém de 17 anos. Mas este é um homem que, aos 43, presenteou a si mesmo com o primeiro beijo de Mariel Hemingway, 16 anos -da atriz, não da personagem– no set de "Manhattan" (1979). (Depois, ela contou em uma entrevista, que correu para o diretor de fotografia Gordon Willis e perguntou: "Eu não tenho que fazer isso de novo, tenho?") Allen disfarça o crime em arte. Hemingway não quis comentar para este artigo.

De muitas maneiras, Allen frustra as pessoas porque ele parece se divertir dançando à beira da indignação. Não é crime que um homem de 82 anos sinta fixação por mulheres de 18 anos, e não é o equivalente a colocar o pênis para fora ou a ter um botão sob a mesa para trancar a porta e impedir que subordinadas saiam de sua sala. Mas ainda assim é repulsivo, de maneira profunda e anacrônica. Mais que isso, Allen parece não ter interesse em melhorar ou mudar sob qualquer aspecto. Ele vive e pensa e cria como fazia nos anos 1970, quase meio século atrás.

Na era do #MeToo, um argumento moral capenga se calcificou em favor de amar a arte mesmo que odiemos o artista, dançando em torno da ideia de Walter Benjamin de que "na base de toda grande obra de arte há uma pilha de barbárie".

Allen tem papel importante nessas conversações por conta do início trágico de seu atual casamento (que já dura duas décadas), que começou quando ele iniciou um relacionamento sexual com a filha adolescente de sua então namorada. Como ele mais tarde descreveu o caso: "Eu foi paternal. Ela respondeu a alguém paternal. Eu gostava de sua juventude e energia. Ela me tratava com deferência".

Amar a arte a trata como um produto concluído, polido e empacotado para o público. Mas quais são os pensamentos que fazem parte dessa arte? As emoções? As prioridades? A feiura? Toda arte é parcialmente autobiográfica –ela vem de dentro da cabeça de alguém, de dentro de sua alma. O arquivo de Allen nos mostra o seu interior.

Richard Morgan é jornalista freelancer em Nova York e autor do livro de memórias "Born in Bedlam".

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