Descrição de chapéu

Bergman que Bergman proibiu diz coisas que seus filmes habituais não mostram

Cineasta disse que se arrependeu de rodar 'Isto Não Aconteceria Aqui' com 4 dias de filmagem

Inácio Araujo
Bolonha

Quase sempre é difícil acreditar que "Isto Não Aconteceria Aqui" (1950) seja um filme de Ingmar Bergman. Mas é. Ninguém se espantará, no entanto, de saber que o gênio sueco desautorizou e pouco depois proibiu a exibição do filme. Como depois de sua morte os produtores também mantiveram a proibição, só muito recentemente a cinemateca sueca pôde restaurá-lo.

Agora, em Bolonha, no festival Ritrovato, o filme, exibido na última terça-feira (26), virou um programa especial, pois quase ninguém vivo pode dizer que o viu.

Cena de Isto Não Aconteceria Aqui (Sånt händer inte här) (1950), de Ingmar Bergman, restaurado e exibido no festival Ritrovato 2018
Cena de 'Isto Não Aconteceria Aqui', de Ingmar Bergman, restaurado e exibido no festival Ritrovato 2018 - Divulgação

Bergman disse que se arrependeu de ter começado a rodar "Isto Não Aconteceria Aqui" com apenas quatro dias de filmagem. Quase um recorde. Visto hoje, porém, pode-se imaginar que Bergman faria boa carreira no cinema americano. Só que não seria Bergman nem a pau.

Temos lá um certo Atkä Natas, ex-nazista, que chega à Suécia a serviço de um país imaginário chamado Liquidatzia levando papéis secretíssimos para seus camaradas (pois visivelmente Liquidatzia é o outro nome da URSS).

Pelo sim, pelo não, na mesma pasta traz documentos que gostaria de levar à embaixada dos EUA. A notar: Natas de trás para diante é Satan, vulgo Satã. Enfim, um sobrevivente.

Até aí estamos a encarar um thriller de espionagem bem à americana e bem do período. Por vezes bem resolvido, em especial no início (a festa de casamento sendo interrompida pela chegada do homem. Ou, mais tarde, quando se tem um cadáver sendo conduzido no meio de um palco durante o ensaio de um grupo de coristas).

No entanto, desde o princípio notamos que Bergman dá mais atenção à mulher de Natas, Vera, que bem bergmaniamente tem um amante. Bem à moda do gênero, trata-se de um policial. Logo vemos que Bergman se interessa pelo drama da mulher, por seu rosto e por suas tensões bem mais do que por tiras e espiões somados.

Deve, porém, ater-se às exigências do thriller. O que faz com má vontade tão evidente em certas ocasiões que o confronto entre Natas e o amante de Vera mais lembra um burlesco.

Há outro aspecto a reter no filme: ele capta bem o trança-trança que ocorreu na Europa do pós-guerra, com gente sendo movida de lá para cá ou se deslocando loucamente. Vera, aliás, é uma nativa de Liquidatzia e cúmplice do marido na espionagem, mas, no entanto, não quer nem ouvir falar da pátria nativa.

Ninguém dirá que este é um grande Bergman. Todo o roteiro parece a léguas de seus interesses. Talvez daí venha a proibição. Todavia, aqui e ali explodem os clarões bergmanianos e a mão do diretor admirável já está presente e visível.

De certa forma, esse Bergman renegado, esse Bergman não Bergman, nos diz coisas que seus filmes habituais, seja de que época forem, não mostram.

Seu traquejo no filme de gênero e mesmo o conhecimento do estilo à americana são dois aspectos a reter.

E, sim, em definitivo, está na cara que Bergman pouco se lixava para política.

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