Descrição de chapéu
The Washington Post

Para Dorothea Lange, fotógrafa de 'Mãe Migrante', a palavra era fundamental na fotografia

Exposição 'Palavras e Fotos', em NY, aborda o vínculo entre texto e imagens

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Philip Kennicott
The Washington Post

A mulher mostrada na foto mais famosa de Dorothea Lange, muitas vezes identificada apenas como “Mãe Migrante”, é, entre outras coisas, muito bonita. O rosto dela mostra marcas do tempo e rugas de preocupação, mas também indica sensibilidade e inteligência.

Ela parece cansada mas bonita, mais ou menos como o homem em “Colhedor Migrante de Algodão”, de 1940, a primeira foto que o visitante vê na exposição “Dorothea Lange: Palavras e Fotos”, no Museu de Arte Moderna de Nova York.

A beleza deles não costuma ser comentada. Essas fotos, em geral, aparecem cercadas de palavras, seja em suas legendas, seja em forma de um diálogo cultural mais amplo sobre a pobreza e o desespero dos EUA nos anos da Grande Depressão e posteriormente.

“Mãe Migrante” foi registrada em 1936, mas só passou a ser conhecida por esse título em 1952, e a identidade da mulher retratada, Florence Owens Thompson, continuou desconhecida pelo público mais amplo até 1978. Ela é um ícone do sofrimento e perseverança americanos, e também é cherokee, outra palavra que não foi associada à imagem até algumas décadas depois de seu registro.

Pode parecer óbvio, e até desinteressante, montar uma exposição sobre a maneira pela qual palavras se vinculam a fotos. Isso acontece o tempo todo, com tamanha frequência que nem pensamos a respeito.

Nos jornais, todas as imagens têm legendas. Quando lemos biografias ou sobre história, nos voltamos instintivamente para a seção de fotografias no centro do livro, a fim de vincular imagens às palavras que estamos absorvendo.

O bicentenário da fotografia se aproxima rapidamente, e jamais fomos mais suspeitosos e mais veementes, em nosso relacionamento com ela: o que uma dada imagem mostra? Como ela foi obtida? Posso confiar nela?

Retrato de Dorothea Lange que compõe a exposição na Fiesp
'Migrant Mother', de Dorothea Lang - Divulgação

Mas esse nem sempre foi o caso. Ao longo da história da fotografia, especialmente entre os fotógrafos que começaram a fotografar como arte, sempre existiu um argumento contrário sobre palavras e imagens: uma boa foto não deveria precisar de explicação. Se a fotografia é uma arte, e se a arte é autossuficiente, a fotografia deveria se bastar sem ajuda e transmitir seu significado pela imagem e não pela descrição da imagem.

Lange registrou algumas das imagens mais impactantes do século passado, mas não tinha objeções ao uso de palavras, e reagiria com impaciência diante de qualquer forma de discurso que abstraísse a fotografia do mundo mais amplo. “Todas as fotografias —não só aquelas que são definidas como ‘documentais’— podem ser fortificadas pelo uso de palavras”. É uma escolha curiosa de termo. “Fortificar”, além de fortalecer, significa proteger, especialmente contra esforços para atacar ou desmantelar a imagem. 

As imagens de Lange eram muitas vezes combativas —parte de seu duradouro interesse pela justiça social—, e isso tornava necessário que fossem fortificadas contra a indiferença e o cinismo.

Muitas de suas fotos aparecem cercadas de palavras, em revistas populares como Life e Look, e em livros conhecidos como “fototextos”, acompanhadas por poemas ou afirmações poeticamente evocativas extraídas de conversas com as pessoas retratadas.

Lange também fazia anotações enquanto fotografava e, ao trabalhar com seu marido, o economista Paul Schuster Taylor, na década de 1930, contribuiu com imagens para os extensos relatórios governamentais que documentavam as condições sociais durante a Grande Depressão.

As imagens dela também inspiraram palavras alheias, como as do escritor John Steinbeck. Em 1938, o poeta Archibald MacLeish usou “Mãe Migrante” em um fototexto intitulado “Terra da Liberdade”, onde a foto aparece ao lado de um dos versos de um poema que ele escreveu para “ilustrar” imagens registradas por fotógrafos que trabalhavam para a Administração da Segurança Agrícola e outras agências do governo: “Agora não sabemos”, o que representava uma forma enigmática de sugerir a ansiedade crescente que havia infectado o sonho americano. A mesma imagem foi usada pelos nazistas para propaganda, em 1943, em uma referência zombeteira ao New Deal do presidente Franklin Roosevelt.

A diversidade de maneiras pelas quais aquela única imagem foi usada e abusada ajuda a compreender por que muitos fotógrafos relutam em usar palavras para definir imagens. Mas limitar-se à imagem, não fixa sua verdade, ao menos não mais do que uma boa ou má legenda fixaria.

Quando “Mãe Migrante” foi reproduzida em um boletim sobre a primeira exposição de fotografia do Museu de Arte Moderna de Nova York, em 1940, a imagem foi impressa com muito menos contraste do que outras versões, de modo que a mulher parecia não só branca mas pálida, com braços quase incolores, e os cabelos das duas crianças que ocultam seus rostos por trás dela eram quase loiros. Parece uma correção racial, e qualquer esperança de que a mulher fosse vista como indígena termina frustrada.

Outro aspecto fundamental é que pensar sobre fotografia sem palavras é essencialmente impossível, e ignorar o contexto mais amplo, centrado em palavras, de sua aparição limita sua riqueza.

A beleza de muitas das pessoas que serviram de tema a Lange, entre as quais Florence Owens Thompson, não é acidental. Lange começou sua carreira como retratista fotográfica, e ela tinha um senso intuitivo sobre o que torna um rosto impactante. Mas a beleza também cria uma faísca, um desejo de saber mais, de interrogar a imagem. 

E, para Lange, a beleza era fundamental na fotografia. Pois, por mais que acatasse as palavras por seu poder fortificador, ela buscava compulsivamente imagens com poder puramente visual. Em uma das fotos mais perturbadoras da exposição, “Tractored Out, Childress County, Texas”, uma casa solitária, pouco mais que um casebre, surge abandonada em um campo cujos sulcos escavados por uma máquina consumiram toda a grama, todo o quintal, todos os sinais de humanidade que um dia podem ter enfeitado o local. É uma imagem devastadora do Dust Bowl, mas bela e perfeita em sua composição.

Muitos fotógrafos temeram que as palavras afastassem o observador da imagem, e esse medo é razoável. Lange compreendia que esse era exatamente o propósito. Uma grande foto deve conduzir quem a observa ao mundo.

Tradução de Paulo Migliacci

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