Como Mira Schendel, que fugiu do nazismo, encontrou a sua liberdade na arte

Artista aclamada no Brasil, que explorou a transparência dos objetos com poesia, ganha mostra na galeria Luisa Strina

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São Paulo

Um traço se estende sobre vários papéis finíssimos enfileirados. Ora ele só atravessa as superfícies, dando a elas continuidade, outrora forma palavras trêmulas, como "vazio" e "bendizei o senhor", e rabiscos.

Como se criasse uma linha do tempo no espaço, Mira Schendel parecia juntar recortes para mapear pistas de seu próprio fluxo de pensamento nas suas monotipias, agora expostas em "Transparências", mostra dedicada a artista na galeria Luisa Strina.

Obra de Mira Schendel na galeria Luisa Strina
Obra da série 'Toquinhos de Acrílico' de Mira Schendel, exibida na galeria Luisa Strina - Divulgação

Schendel perpassou o expressionismo, minimalismo e construtivismo, mas sem se encaixar em nenhum dos movimentos artísticos predominantes na época, movida pela própria obsessão sobre a repetição da linha no espaço que se constituiu como um alivio para suas ansiedades.

"Não acho que as pessoas percebem o quanto ela é importante para a arte moderna brasileira, mas os museus percebem", diz o organizador da exposição, Olivier Renaud-Clement, que também já curou uma mostra de Schendel na galeria Hauser & Wirth, em Nova York.

O Tate, em Londres, dedicou uma exposição às obras de Schendel em 2013. Pouco antes, em 2009, o MoMa, em Nova York, dedicou uma sala a artista que, morta em 1988, não presenciou o estrondoso sucesso comercial que suas obras atingiriam no final da década de 2000, entrando para o hall de artistas mulheres que obtiveram o reconhecimento do circuito artístico tardiamente, apesar da produção intensa.

Schendel nasceu na Suíça, em 1919. Judia, migrou para a Itália onde foi criada como católica, mas foi forçada a saltar de país em país, entre Bulgária, Áustria e Sarajevo, para evitar perseguição fascista. Foi no Brasil que finalmente encontrou uma casa, em 1949, ao lado do marido Josep Hargesheimer —os dois se separariam em 1953, e Schendel trocou Porto Alegre por São Paulo.

Foi na pulsante São Paulo da década de 1950, que agitava o movimento concretista e inaugurava a Bienal com Alexander Calder, Alfredo Volpi, Aldemir Martins, além de criar os embriões para Lygia Clark e Hélio Oiticica, que Schendel se reconheceu artista.

A artista plástica Mira Schendel, em 1983 - Cícero O. Neto/Folhapress/Cícero O. Neto/Folhapress

Diferente dos seus contemporâneos, porém, a artista se movia mais por buscas pessoais do que conceitos estéticos. "Apesar do tom intelectual com que tratam o trabalho de Mira, seu jeito de trabalhar foi sempre se divertindo. Ela descobria coisas novas em papelaria e passava a noite inventando coisas", contou sua única filha, Ada Schendel, à Folha em 2002.

Ainda que o sucesso comercial tenha atrasado, Schendel foi aplaudida pelo circuito por décadas. Participou de nove edições da Bienal de São Paulo e, na de 1969, exibiu "Ondas Paradas de Probabilidade", em que milhares de fios transparentes caem do teto acompanhados por um salmo do Antigo Testamento fixado na parede.

A obra dá os ingredientes para a expressão artística que se tornaria a marca de Schendel, concebida pela união entre a exploração de materiais transparentes e a palavra. Em seus diários e em entrevistas, a artista repetiria seu fascínio pelo translúcido, silêncio visual que poderia abrir o caminho para a liberdade.

"Foi a temática da transparência que me levou aos objetos", escreveu Schendel em "No Vazio do Mundo", organizado por Sônia Salztein. Algumas dessas criações estão na galeria Luisa Strina. São blocos feitos em acrílico, com números e letras em seu interior, que a artista os definiu como "tentativas de evitar o atrás e a frente".

Outras duas obras são compostas por recortes de letras e de páginas de jornais e livros prensados entre placas de vidro. Encaradas de frente, lembram a disposição de um espelho, ainda que sem reflexo.

"Quem há de negar que sua identidade tenha informado sua obra?", questiona Rodrigo Moura, curador chefe do Museo del Barrio de Nova York e diretor artístico da feira Rotas Brasileiras, no ensaio para "Transparências". "Que a vivência da perda e da diáspora esteja por trás do seu impulso por transcendência? Que a linguagem esteja sempre prestes a desmoronar em sua obra, como só acontece com aqueles para os quais a língua nunca é uma garantia?".

As letras se acumulam no interior dos trabalhos transparentes como se formassem um bolo no estômago, massa que acumula o não-dito.

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