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hélio schwartsman

 

11/05/2006 - 00h00

Natureza cruel

Dentre as muitas coisas que não entendo no mundo moderno, uma das que mais me espantam é o vigor dos movimentos em defesa dos animais. Não me entendam mal. Já se foram os tempos em que eu me divertia amarrando latas ao rabo de gatos ou realizando procedimentos operatórios em batráquios. Como a maioria das pessoas, enterneço-me com filhotinhos de cães e repudio o sofrimento desnecessário imposto a seres sencientes de todas as espécies. O problema é que a defesa incondicional dos direitos dos animais, como a proposta por vários desses grupos, não encontra respaldo filosófico, lógico ou biológico. Gostemos ou não, o ser humano está mais ou menos no topo da cadeia alimentar. Nossa sobrevivência, como indivíduos e como espécie, depende da destruição de outros viventes. Em quatro palavras, a natureza é cruel.

Escrevo essas linhas a propósito da reportagem publicada pela Folha na segunda-feira* a respeito de um novo vídeo que questiona o uso de animais em pesquisa. Exceto pelos patologicamente sádicos --que são sempre uma minoria em qualquer grupo social--, nenhum cientista aprecia sacrificar cobaias, mas existem inúmeras situações em que isso é crucial. Toda nova droga ou vacina que é desenvolvida precisa, a uma dada altura, ser experimentada "in vivo". Parece razoável que, antes de dá-la a humanos, a testemos com ratos. Há mesmo situações que justificam a vivissecção ou o sacrifício do animal. Um exemplo eloqüente é o de experimentos que visam a verificar o efeito da injeção de células-tronco sobre órgãos avariados. Aqui não há como escapar a imolar a cobaia para autopsiar o órgão e saber se houve ou não a regeneração pretendida.

Daí não se segue, é claro, que eu apóie toda e qualquer experimentação envolvendo animais. Os testes ainda empregados pela indústria de cosméticos parecem especialmente cruéis e desnecessários, podendo ser substituídos por provas "in vitro" com cultura de células. Ainda que a adoção da nova tecnologia encareça um pouco o produto, esse é um custo que pode ser repassado ao consumidor ou absorvido. Na pior das hipóteses, o gasto extra, ao lado de um selo atestando que a empresa tal não maltrata animais, pode ser considerado um investimento em marketing.

Um pouco mais complexo é o caso das faculdades de medicina. Cirurgiões não nascem prontos. É recomendável que, antes de abrir a barriga de um humano, o estudante esteja bem adestrado. Nos países ricos, simuladores em 3D e outras parafernálias tecnológicas já substituem a contento os cães e porcos ainda usados por aqui. Acho que é uma questão de tempo até que as vivissecções sejam definitivamente banidas de nossas escolas. Observe-se que a eventual proscrição, a qual aplaudo, não alterará muito a sorte dos bichos. Os porcos continuarão sendo abatidos nos matadouros e sem anestesia para virar salsichas, e os cães seguirão sendo sacrificados pela carrocinha para o necessário controle de zoonoses. A natureza, como já disse, é cruel.

Feitas essas observações gerais, procuremos entender melhor os fundamentos filosóficos da questão. Aqueles que se opõem com veemência a todo tipo de experimentação estão basicamente afirmando que existe um impedimento moral absoluto a tudo o que implique sacrifício ou dano a outros seres vivos, que teriam um estatuto jurídico semelhante ao de homens no que diz respeito ao direito à vida. Além de má filosofia, essa é uma posição essencialmente suicida. Como nós humanos não desenvolvemos a capacidade de realizar a fotossíntese, precisamos "roubar" de outros a energia da qual dependemos para viver. Podemos eleger como "vitimas" ou bem vegetais, ou animais ou mesmo humanos, mas o fato é que nossa existência só é possível através da morte de outros seres vivos.

Alguém poderia argumentar que é perfeitamente possível viver apenas de frutas e outras partes de vegetais cujo consumo não implique a morte do espécime. Pode ser, mas apenas em pequena escala. Se os atuais seis bilhões de humanos aceitassem privar-se de todo tipo de carne e concordassem em alimentar-se exclusivamente de frutas e grãos, nós provavelmente teríamos de derrubar o que restou das florestas para cultivar pomares. Com as matas, iria também boa parte da biodiversidade remanescente. Não estamos mais falando do desaparecimento de indivíduos isolados, mas de todos os representantes de várias espécies.

A tese do impedimento absoluto é, portanto, uma asneira. O simples fato de que a morte de outros seres vivos é imprescindível à nossa existência já prova que temos o direito de dispor da vida de animais. E não parece haver muita diferença entre matar um boi para fartar-se num delicioso churrasco ou vivisseccionar um roedor para desenvolver uma vacina que poderá salvar a vida de milhões de criancinhas humanas. Se quisermos, o segundo sacrifício foi biologicamente mais "rentável" do que o primeiro.

Não podemos tentar fundar um Direito que inclua todos os seres vivos. Quem mais perto chegou de fazê-lo foi o bioeticista australiano Peter Singer. Para ele, seres vivos vão adquirindo "direitos" à medida que se mostram mais conscientes. Assim, um porco seria mais digno de nossa compaixão do que um mosquito; a solidariedade devida ao chimpanzé arrebataria aquela que prestamos a nossos amigos suínos. O efeito colateral dessa argumentação é que fetos humanos e mesmo doentes mentais teriam menos direitos --uma tese que poucos estão dispostos a comprar. Singer, entretanto, coerentemente, defende o aborto, a eugenia e até o infanticídio em determinados casos. Mais informações sobre o instigante pensamento do filósofo australiano podem ser lidas nas colunas "O troféu são Herodes e as amebas", "Só para confundir..." e "Salvem as baleias".

O fundamento da ética é o reconhecimento do outro como um semelhante e, portanto, titular dos mesmos direitos. E, por razões óbvias, não posso considerar-me igual a meu prato de comida, que é necessariamente um meio para mim.

Até concordo que devemos evitar os testes desnecessários e aliviar quanto pudermos o sofrimento de animais envolvidos em pesquisas --não porque eles sejam titulares de direitos, mas para preservar nossa própria sensibilidade, a qual, como bem constatou Singer, vem se expandindo ao longo da história para círculos cada vez mais amplos. Nesse contexto, alguma militância é bem-vinda. O dono da indústria de cosméticos não vai adotar uma tecnologia mais cara se não houver nenhuma pressão social para que o faça. Os defensores mais entusiasmados da causa animal, entretanto, vão muito além do aceitável, ameaçando até assassinar seres humanos que não pensem como eles. Para ser minimamente coerentes, deveriam dedicar a seus adversários a mesma proteção que pretendem estender a ratos e lesmas: o direito de não sofrer estresse físico e psíquico. Recusam-se, porém, terminantemente a fazê-lo, no que dão mais uma demonstração de quão cruel é a natureza.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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