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joão pereira coutinho

 

10/01/2011 - 00h05

Os verdadeiros escravos

Semanas atrás, escrevi nesta Folha sobre "O caso Monteiro Lobato". Tudo porque o Conselho Nacional de Educação, com os caninos da censura afiados, preparava-se para sinalizar com histeria politicamente correta uma obra do referido escritor onde existiam referências pouco simpáticas a "pretos".

Dizia eu que o gesto revelava a ignorância de quem propunha tal sinalização: cada obra expressa o espírito de uma época. E se limpamos Monteiro Lobato, acabamos por limpar grande parte da tradição cultural do Ocidente; uma tradição que ofenderá sempre alguém, algures, ao contestar ou ofender crenças ou valores particulares.

Um pormenor, porém, deixei de ficar de fora: limpar uma obra de arte de qualquer referência ofensiva para certas minorias ou raças é também um acto de vandalismo cultural. Porque nada nos autoriza a desfigurar uma obra de arte para que ela possa acomodar os preconceitos transitórios da nossa época.

Se não o disse sobre Monteiro Lobato, posso dizê-lo sobre Mark Twain (1835 - 1910), um dos meus autores de formação e que foi centenário no ano que findou. Leio agora que uma nova edição de "As Aventuras de Huckleberry Finn", esse amado livro, pretende apagar as 219 vezes em que a palavra "nigger" (crioulo) aparece no texto. Em substituição de "nigger", surgirá "escravo" - um termo que expressa de forma rigorosa as "relações de classe" no sul dos Estados Unidos em pleno século 19.

Como explicar essa mudança? O autor do prodígio, o professor Alan Gribben, confessou à imprensa que não consegue ler nas aulas e em voz alta as passagens da obra onde "nigger" aparece. O termo é ofensivo e, mais que ofensivo, esconde a realidade da escravatura. Para o professor Gribben, uma pequena "alteração" em nada modifica o humor e a grandeza narrativa da obra de Twain. E todos ficam contentes.

Em tempos mais civilizados, nem valeria a pena comentar a barbaridade: se um professor de Literatura é incapaz de evitar o pecado do anacronismo, exportando para o passado juízos morais que são próprios do tempo presente, isso deveria desqualifiá-lo imediatamente para ensinar Literatura.

Mas o professor Gribben não comete apenas o pecado do anacronismo. Ele pretende redimir o seu "desconforto" com um ato de vandalismo estético. Apagar as palavras originais de um autor pela substituição de novas palavras é tão grotesco como redesenhar a Capela Sistina para não ofender a sensibilidade dos ateus; pintar umas calcinhas sobre a vagina de Courbert para não ofender a dignidade feminista; extirpar toda a violência expressiva dos filmes de Tarantino para não ofender a consciência dos pacifistas. E etc. etc. etc. A lista, também aqui, não tem fim.

Os fanáticos desejam expor, com militância abusiva, os crimes da escravatura. Mas, aprisionados à sua ignorância e à sua selvajaria, nem se apercebem que os verdadeiros escravos são eles.

joão pereira coutinho

João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do 'Correio da Manhã', o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro 'Avenida Paulista' (Record). Escreve às terças na versão impressa e a cada duas semanas, às segundas, no site.

 

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