Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
07/03/2011 - 10h27

Imagens científicas da medicina criam mercado da esperança

Publicidade

HELOÍSA HELVÉCIA
EDITORA DE SAÚDE/EQUILÍBRIO

Enquanto nossas vísceras são esquadrinhadas por ressonâncias, tomografias e tudo o mais, aumenta a crença de que as respostas para qualquer sofrimento se escondem no físico.

Essa relação é tema de "Corpo em Evidência", trabalho dos pesquisadores Francisco Ortega e Rafaela Zorzanelli.

Quem fala à Folha é a capixaba Rafaela, que é mestre em psicologia e odeia tirar fotos. Longe de negar o benefício trazido pelas tecnologias, ela estuda o ônus, como novas síndromes e suas representações sociais."Ganhamos muito, mas há modificações fortes na nossa experiência como ser humano. Se são perdas, não sei."

Paula Giolito/Folhapress
A pesquisadora Rafaela Zorzanelli, 33, em seu escritório, no Rio
A pesquisadora Rafaela Zorzanelli, 33, em seu escritório, no Rio

*

Folha - De que jeito as imagens científicas nos afetam?

Rafaela Zorzanelli - Você abre qualquer revista e vê imagens de músculos, ossos, de cérebro normal, cérebro fatigado, cérebro autista... Isso cria a ilusão de que a doença é um objeto tridimensional, localizado em cores primárias. É bonito, mas não sabemos nada sobre a produção dessas imagens. Em geral o que se vê é um cérebro preto com uma área colorida em destaque, responsável por certa doença. Mas o cérebro nunca está preto, a não ser que esteja morto. Aquilo não é o cérebro de ninguém.
Mas recebemos essas imagens como a certeza de que a doença está ali. Isso contribui para a visão da doença como algo restrito ao corpo. A imagem tem um poder de convencimento que nos deixa embevecidos. Estão sendo feitas inferências demais a partir de neuroimagens.

Quais são as consequências?

O principal desdobramento é um pouco sinistro, é um mercado da esperança. Todos nós temos suscetibilidade para acreditar em qualquer coisa. É um mercado lucrativo para indústrias e nichos da saúde que manipulam nosso desejo de melhorar a qualidade de vida.

O livro de vocês mostra que o corpo está em evidência, mas nem por isso se tira mais prazer dele. Não é um paradoxo?

Sim. Há uma exploração do corpo na sua parte invisível, pelas tecnologias de acesso à visceralidade. E também há uma visibilidade performática da superfície do corpo. Plásticas, próteses, artifícios contemporâneos de corpos biônicos, com partes orgânicas e não orgânicas, titânios para recompor capacidades perdidas... O corpo está em exibição e parece que estamos sabendo fruir melhor o corpo. Mas o que parece como fruição é uma recusa do que é humano: perder atributos e funções, adoecer, morrer. As práticas que colocam o corpo em evidência tentam mascarar o que é da condição humana: imperfeição, falência, decrepitude.

O que mudou na nossa percepção do próprio corpo?

Passamos por um momento de exigência de eficácia irrestrita.Estamos sempre nos comparando a ideais de performance, e com uma sensação de defasagem: não alcançamos essa perfeição na família, no lazer, no trabalho. Essa sensação contribui para o aumento das patologias. Chegam aos consultórios pessoas que sofrem por não corresponderem aos padrões: anorexia, bulimia, vigorexia, ortorexia são transtornos ligados ao desconforto com a aparência.
A gente vê um aumento nas depressões, nas síndromes funcionais -do colo irritável, da fadiga crônica, fibromiálgica. Todas se colocam no limite entre o físico e o mental. Essas síndromes começam a aparecer em descrições médicas há 20 ou 30 anos. Talvez apontem uma divisa em relação à nossa experiência do corpo.

O livro também aponta o peso dos avanços tecnológicos na construção de doenças...

O livro tenta fugir da postura obscurantista segundo a qual as tecnologias médicas estão mudando a vida para pior. Não é verdade. Mas para entender uma doença é necessário olhar para outras dimensões que não a biologia. Não há como ter leitura rica da doença sem olhar para o sentido social dado a ela.

Há quem questione a existência do Transtorno do Deficit de Atenção e Hiperatividade.

É ótimo esse olhar crítico sobre a saúde, mas há exagero em entender que, se as doenças são construídas culturalmente, não existem. Pensam que é tudo lobby para vender medicamentos. Há um sobrediagnóstico de TDAH e há o fato de a droga Ritalina, que existe desde 1950, só recentemente ter alcançado um número de vendas considerável. Tudo isso faz parte da construção do TDAH. Não significa, entretanto, que não existam pessoas que se encaixam na descrição da doença e se beneficiam com o remédio.

Qual o papel da classe médica na medicalização excessiva?

Na década de 70, a interpretação era de que a indústria farmacêutica tinha poder de controle social, e as estratégias de marketing manipulavam um indivíduo inocente que passava a consumir remédios. Hoje o mundo é mais complexo. Teorias conspiratórias não são mais suficientes. Há um ingrediente muito mais apimentado nessa relação: cada um de nós deseja consumir medicamentos. Estamos informados via Google, via amigos. Chegamos ao médico com diagnóstico pronto. Se ele não te der nada, você não gosta. Todos colaboramos com o processo.

O lado subjetivo da doença não interessa mais, é isso?

Para traduzir uma ciência que seja útil e produtiva é preciso deixar de lado certas dimensões. A subjetividade fica fora da pesquisa de bancada. Mas, às vezes, há uma extrema redução. Temos sido facilmente convencidos por explicações que nos reduzem ao físico. Temos visto casos na mídia de gente famosa que cometeu um ato que não deveria, furtou algo, errou a letra de uma música e depois vem a público dizer que estava sob efeito de medicamento. Não duvido. Mas o que me chama a atenção é que ninguém diz que errou por estar transtornado. Quando damos explicação reduzida ao físico, toda nossa responsabilidade moral fica eximida.

Célula-tronco faz milagre?

Os estudos que se têm até hoje são muito iniciais. No entanto, é desproporcional o modo como essas experiências passam para a divulgação científica e como isso é vendido ao leigo, que já compra cosméticos com células-tronco. Você sai da maternidade e já pode congelar o sangue do cordão umbilical para futuros problemas.

Tem sido criada uma indústria em torno da incerteza das células-tronco. Não é um caminho sem esperanças. Mas é inicial e muito incerto. Esse campo deixa evidente a ideia de que temos sido muito convencidos por respostas baseadas na fisiologia. Ficamos fascinados, é um processo de fé cega na ciência.

Há algo que acontece entre a divulgação do relatório de pesquisa e a revista semanal que me interessa muito e que não tem sido pesquisado aqui. É o superdimensionamento do achado científico. Células-tronco têm a qualidade de serem pluripotentes, de se transformar em qualquer tecido. Essa mesma capacidade -e isso ninguém publica- pode fazer com que a infusão dessas células crie um tubo neural no coração. Ou câncer. Há riscos que não passam à divulgação científica. Ninguém quer ouvir isso.

O que acha do uso ampliado de reguladores de humor?

O uso recreativo de psicofármacos é uma prática instalada. Há condições de vida que passaram a ser tratadas como doenças. Timidez, falta de concentração, impulsividade e até tristeza. Há um rebaixamento da tolerância social para sintomas leves. Passamos a não gostar de ficar tristes, tímidos, isso é vivido com constrangimento. O que poderia ser charme passou a ser visto como sinal de incapacidade de lidar com demandas da sociedade. O processo tem a ver com a disponibilidade de drogas eficazes, com nosso desejo de desempenhar bem e com manuais de classificação de doenças. Esse problema, fora do país, é tratado como questão de saúde pública.

A saúde é a nova religião?

Uma série de autores tem apontado essa ascensão da saúde como uma forma de moralidade. Estamos mais atentos, sabemos controlar a taxa de colesterol, a pressão sanguínea e os nomes antes manejados só pelos profissionais da medicina. Há um interesse maior. Mas não é só um interesse: é uma imposição. Passamos a vigiar o que comemos, bebemos, os hábitos que nos colocam em risco. Mas passamos a ser vigilantes também do outro. A saúde virou a nova salvação. Essa vigilância traz benefícios, mas tem um ônus: o de viver paranoico com a saúde.

*

RAIO-X

NOME
Rafaela Zorzanelli, 33

FORMAÇÃO
Mestre em psicologia (UFF), doutora em saúde coletiva e pós-doutoranda no Instituto de Medicina Social da UERJ

ATUAÇÃO
É professora e pesquisadora na UERJ, com financiamento Faperj/Capes; pesquisadora colaboradora do Instituto Max Planck de História das Ciências de Berlim; estuda, com a Universidade de Montreal, a divulgação de pesquisas com células-tronco

LIVROS
"Corpo em Evidência - A ciência e a redefinição do humano" (Civilização Brasileira, 190 págs., R$ 21, com Francisco Ortega) e "Esboços Não Acabados e Vacilantes" (Annablume, 124 págs., R$ 27)

+ Livraria

 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página