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Filosofia
do pensador francês não deriva de um tropeço
em seu ponto de partida
Descartes, esse cavaleiro
(6/6/1999)
BENTO PRADO JR.
"Descartes, ce cavalier qui
partit d'un si bon pas" (1)
Charles
Péguy
Há
20 anos eu descobria (tardiamente) todo o interesse da tradição
contemporânea da filosofia da mente anglo-saxônica,
lendo o belo livro "The Concept of Mind", de Gilbert Ryle.
Sem dúvida aí encontrava um estilo de análise
das categorias psicológicas que podia rivalizar com o da
fenomenologia, com o qual estava familiarizado. Era o prazer de
olhar a mesma paisagem com óculos diferentes, o que permitia
mesmo vislumbrar algumas coincidências inesperadas entre óticas
tão opostas. Cheguei a me perguntar: onde, na verdade, se
opõem a descrição do Lebenswelt e a gramática
da linguagem quotidiana, a análise do mundo comum e a da
linguagem comum? Foi aliás esse curioso entrecruzamento que
me permitiu escrever, em 1981, um texto sobre as surpreendentes
convergências entre as teorias da imaginação
de "The Concept of Mind" e as de "L'Imaginaire",
de Sartre (aliás, Ryle confessa que tinha em mente "L'Imaginaire"
ao escrever seu livro).
A fascinação pelo estilo ao mesmo tempo claro e sofisticado
de Ryle não me impedia, todavia, de recusar, ab ovo, seu
ponto de partida na ruptura com a filosofia de Descartes, caricaturalmente
definida, cujo dualismo teria fabricado o mito do "ghost in
the machine" (fantasma na máquina) que estaria na origem
dos descaminhos de toda filosofia moderna, fonte de toda uma teratologia
conceitual, a ser dissolvida pela análise categorial ou gramatical.
Por essa razão, em 1990, na apresentação do
"Ensaio sobre a Moral de Descartes", de meu professor
Lívio Teixeira (ed. Brasiliense), não hesitava em
apontar o que me parecia ser um equívoco ao mesmo tempo filológico
e filosófico, digamos "histórico-metafísico",
da filosofia analítica de língua inglesa: "Ora,
nem tudo, na filosofia recente, participa desse descuido pela história
da metafísica. Merleau-Ponty, por exemplo, não teria
provavelmente escrito a "Fenomenologia da Percepção"
ou proposto uma teoria não-dualista que liga o corpo à
alma, se não tivesse ruminado longamente o sintomático
texto da "Sexta Meditação", em que Descartes
afirma que é impossível pensar a alma como um piloto
em seu navio que é o exato correspondente de "um fantasma
numa máquina" (cf., a propósito, a nota de Gérard
Lebrun a respeito dessa frase em nossa tradução das
"Meditationes" de Descartes, acessível na coleção
"Pensadores", da Abril)".
Mais recentemente (1997) retornaria ao tema num ensaio intitulado
"Descartes e o Último Wittgenstein: O Argumento do Sonho
Revisitado" (revista "Analytica" vol. 3, nº
1, 1998, págs. 219-246).
Aí tentava mostrar a ligação interna entre
a má interpretação de Descartes e uma má
leitura do próprio Wittgenstein, imperante entre os discípulos
ingleses do filósofo austríaco. O equívoco
de ler Wittgenstein como anti-Descartes. E fiquei reconfortado,
na ocasião, ao ler um ensaio de Gordon Baker, certamente
um dos mais autorizados intérpretes da obra do autor do "Tractatus",
no qual afirmava: "Wittgenstein não conhece as obras
de Descartes e, aliás, não pensa que as confusões
filosóficas de hoje decorrem dos pecados que alguns grandes
filósofos teriam cometido ontem... Há portanto razões
muito fortes para concluir que Wittgenstein não se empenha
numa batalha contra um adversário "cartesiano"
mais ou menos bem definido" (cf. "La Réception
de l'Argument du Langage Privé", em "Acta du Colloque
Wittgenstein", 1988, ed. TER, Paris).
O adversário dos filósofos analíticos é
menos o Descartes histórico e sua obra do que um fantasma
"baladeur", que atravessa os séculos e que é
um produto de um anticartesianismo também "baladeur"
(por exemplo, a crítica ao argumento do sonho é o
mesmo em Malebranche, Locke, Spinosa, Kant, Sartre, Ryle e Malcolm,
mais uma venerável tradição do que uma revolução
crítica operada pelo saudável "linguistic turn"
da filosofia analítica; é Sartre quem fala do cartesianismo
"baladeur" -que passeia- para referir-se a uma visão
estereotipada da filosofia de Descartes, que perdura ao longo dos
tempos).
Tais são as razões que explicam o entusiasmo com que
li o livro "Descartes" Dualism", de Gordon Baker
e Katherine J. Morris, publicado em 1966 (ed. Routledge). O alvo
do livro é justamente desmontar a lenda do dualismo cartesiano
e mostrar que o "erro categorial" que estaria na raiz
do pensamento de Descartes só é um erro para quem
parte dogmaticamente de um outro mapa categorial. Aqui também
se sublinha a cegueira para a história da Metafísica
e para revoluções (ou crises) categoriais que definem
seu desenrolar. Trata-se de demolir o mito do dualismo cartesiano
por meio de uma nova leitura da obra de Descartes que, restituindo
o sentido original de seus conceitos básicos (por exemplo,
"consciência"), na sua distância em relação
às idéias contemporâneas, mostra como não
lhe podem ser imputadas as "confusões categoriais"
elementares que lhe são normalmente atribuídas pelo
"mainstream" da filosofia da mente. Essa leitura canônica
que obriga o leitor (fixado na idéia dos animais-máquina)
a tergiversar na leitura de frases como aquelas em que Descartes
afirma que os animais "exprimem paixões" ou "comunicam
medo ou raiva".
Aliás, já em 1989 Lili Alanen ("Descartes's Dualism
and the Philosophy of Mind", "Révue de Métaphysique
et de Morale", nº 3) caminhava na mesma direção,
lembrando que Descartes recomendava à princesa Elisabeth
abster-se da meditação e do estudo das matemáticas,
voltar-se para o domínio da vida comum para poder entender
a união corpo-alma. E acrescentava:
"Descartes poderia ter perfeitamente dito com Wittgenstein:
"Permita Deus ao filósofo ver o que está diante
dos olhos de todo mundo'".
Mas, sobretudo, trata-se de apontar para o "ponto cego"
da filosofia da mente de língua inglesa, que, proibindo-lhe
acesso ao sentido da filosofia de Descartes, compromete também
o seu projeto teórico no presente. "As antigas maneiras
de ver as coisas não merecem menos respeito de que seus equivalentes
modernos (mesmo se não exercem a mesma atração
sobre nós); nenhuma é a única privilegiada
(nem sequer a doutrina das formas de juízo e de inferência
subjacentes à teoria da quantificação). Se
virmos isso corretamente, poderemos chegar à perspectiva
radical segundo a qual simpatia e imaginação podem
ser vistas como ligadas internamente e que, assim, são virtudes
intelectuais da maior importância para os filósofos"
("Descartes's Dualism", pág. 219). Seria a filosofia
do século 20 melhor que a do 17?
Não se poderia dizer melhor. Justiça é feita
ao bom e velho Descartes: se não é o solitário
super-herói da filosofia moderna, tampouco será o
seu vilão absoluto (nem Super-Homem, nem Lex Luthor, apenas
um gentil-homem do Poitou que pensava muito; decididamente, a história
da filosofia não tem a estrutura das histórias em
quadrinhos). Recuperamos a dimensão histórica da filosofia
e o poder hermenêutico da imaginação filosófica
contra o cinzento império do entendimento tecno-lógico
do "mainstream" da filosofia da mente. Por que não
foi ainda traduzido esse belo livro para o português? Os filósofos
brasileiros precisam dele. Aqui descobrimos que a filosofia de Descartes
não deriva de um fatal tropeço em seu ponto de partida
(o "cogito" como paradigma do equívoco da "linguagem
privada"). De fato, esse cavaleiro não partiu de um
passo em falso.Nota:
1. "Descartes, esse cavaleiro que partiu com tão bom
passo".
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