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17/10/2005 - 07h50

Pará vende relíquias a turistas e coleções

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CLAUDIO ANGELO
Enviado especial da Folha de S.Paulo a Santarém

É fácil comprar relíquias arqueológicas em Santarém, cidade construída sobre o maior sítio pré-histórico da Amazônia. Tudo o que você tem de fazer é ir até as maiores lojas de artesanato da cidade. Se pedir com jeito, o dono da loja o conduzirá até os fundos e abrirá uma caixa de papelão repleta de fragmentos de cerâmica da cultura tapajônica, que habitou a região do século 11 ao 16. Os preços variam de R$ 40 a R$ 150, dependendo do estado da peça. A prática é proibida por lei.

A Folha flagrou venda de material arqueológico nas duas maiores lojas de artesanato da cidade: a Muiraquitã e a Atmosphera Amazonica. Em ambas também foram oferecidos ao repórter machados de pedra pré-históricos de origem não-especificada. Valor: de R$ 300 a R$ 400 cada.

O dono da Muitaquitã, João Mileo, negou em entrevista telefônica a venda dos artefatos. "Eu já tive peças antigamente para vender, mas não tenho mais. Assim como há 25 anos eu vendia peles." A caixa com cerâmica arqueológica, segundo ele, pertencia a outra pessoa e estava apenas sendo guardada em sua loja. A Folha não conseguiu localizar os proprietários pela Atmoshpera Amazonica. A loja não tem telefone.

O comércio ilegal de antigüidades nas lojas é abastecido sobretudo por achados casuais feitos em comunidades rurais ao redor de Santarém. Geralmente são fragmentos, encontrados em beira de rio ou em lavouras --boa parte da agricultura familiar da região se desenvolve sobre sítios.

Há, no entanto, outro tipo de tráfico, mais sutil e sofisticado. Ele envolve contatos e peças inteiras, como vasos tapajônicos, estatuetas de cerâmica e os raríssimos muiraquitãs, amuletos de pedra em forma de animal que são símbolo do Pará. Não há estimativas confiáveis para o preço desses artefatos, mas peças amazônicas já foram adquiridas por US$ 100 mil em uma galeria francesa.

Esse negócio se aproveita também das diversas coleções particulares de arte pré-histórica existentes em Santarém. Um de seus feitos recentes foi a venda, em 2002, de duas estatuetas de cerâmica tapajônica para a Cid Collection, coleção arqueológica montada pelo dono do Banco Santos, Edemar Cid Ferreira. As peças integraram a exposição "Antes - Histórias da Pré-História", que estava em cartaz em São Paulo.

"Essas peças passaram muito tempo na minha casa, sendo restauradas. Acabei vendo-as anos depois na televisão", conta o artista plástico Laurimar Leal, diretor do Centro Cultural João Fona, instituição que faz as vezes de museu arqueológico municipal.

Leal é, ele mesmo, dono de uma grande coleção particular de arte tapajônica --que ele diz não vender. Ele afirma que as peças da Cid Collection foram adquiridas por um casal "de fora".

O mesmo casal, identificado por várias pessoas em Santarém e também por arqueólogos somente como Glória e Kiko, viajava em avião fretado e comprou artefatos arqueológicos por toda a Amazônia, incluindo a ilha de Marajó e a região de Manaus. Hoje, a Cid Collection tem 1.200 peças pré-históricas, incluindo diversos muiraquitãs. O material foi confiscado após a quebra do Banco Santos. Enquanto a Justiça decide para onde vão a peças, elas são mantidas em um depósito em São Paulo.

Segundo Leal, a venda das estatuetas de Santarém à Cid Collection teria sido organizada pela jornalista Maria da Graça Gonçalves. Ela confirma ter sido procurada pelo casal, mas nega ter participado da operação. "Eu não ando remexendo sítios por aí. Nem gosto de coisas pré-históricas."

Procurado pela Folha, o advogado do Banco Santos, Ricardo Tepedino, não retornou ligações e um e-mail com pedido de entrevista sobre o caso. Em entrevistas anteriores, os representantes do banco afirmaram que os achados dos artefatos arqueológicos que integram a coleção foram "fortuitos". A Cid Collection foi legalizada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em 2002, após um acordo com Cid Ferreira.

Deserto de arqueólogos

O comércio ilegal e a destruição de sítios arqueológicos em Santarém se baseiam no tripé pobreza-ignorância-descaso do poder público. Apesar de possuir uma pré-história rica, que atrai pencas de visitantes a exposições no sul do país e ainda desafia os arqueólogos, a região do baixo rio Tapajós não tem nenhum museu de arqueologia. Não há tampouco arqueólogos trabalhando na cidade para supervisionar construções e obras públicas.

A cidade foi erguida sobre grandes extensões de terra preta, nome dado aos sedimentos escuros formados por ocupações humanas de grande densidade ou duração. Ali ficava a sede do cacicado dos índios tapajós, uma nação poderosa e politicamente organizada, que deu origem à lenda das Amazonas. Um relato do século 17 fala em 60 mil guerreiros sob o comando de seu chefe.

A urbanização fez com que boa parte do centro de Santarém e o bairro conhecido --não por acaso-- como Aldeia soterrassem os sítios. É rotina, em construções, aparecerem cacos de cerâmica tapajônica ou mesmo peças de pedra. O registro arqueológico, não raro, é destruído no processo.

"Não temos camadas históricas [do século 16] na região do porto de Santarém porque um trator da Companhia das Docas do Pará arrancou de 10 a 20 centímetros da superfície para "limpar" a vegetação", queixa-se a arqueóloga americana Anna Roosevelt, da Universidade de Illinois em Chicago, única pesquisadora a realizar escavações sistemáticas na cidade.

Jardinagem pré-histórica

Outro problema, curiosamente, são jardins e hortas da região. A terra preta é um tipo de solo muito fértil. E existe um verdadeiro mercado de terras pretas, tiradas aos caminhões de sítios em volta da cidade, para abastecer os seus jardins --onde é possível ainda hoje encontrar cacos de cerâmica.

A expansão da soja ao longo da rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém), além do impacto ambiental já conhecido, pode ter também um impacto ao patrimônio arqueológico --há "manchas" de terra preta ao longo da estrada, e há notícias da destruição de pelo menos um sítio.

Por fim, a população local não tem consciência do valor do patrimônio. Um exemplo dessa falta de consciência foi testemunhado pela reportagem no 8º BEC, sítio arqueológico na periferia de Santarém. Ali, o agricultor Pedro Santos vende terra preta, a R$ 45 a caçamba. Questionado sobre se já havia encontrado artefatos pré-históricos, respondeu: "Dia desses bati com a enxada num machado de pedra. Joguei foi fora".

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