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23/09/2000
-
04h08
A seguir, trechos de "Darkness in El Dorado", de Patrick Tierney:
Os ianomâmis podem permanecer para sempre como um enigma. Mas James Neel certamente escolheu o lugar errado e as pessoas erradas para experimentar e provar suas idéias sobre hierarquias de violência e seleção genética. Os ianomâmis possuem um baixo nível de homicídios pelos padrões mundiais de cultura tribal e mesmo baixos níveis para os padrões amazônicos. Na verdade, eles são covardes até, se comparados com muitas tribos, especialmente quando se trata de lidar com agressores de fora, como mineiros em busca de ouro. Como Chagnon apontou em sua tese de doutorado, "os ianomâmis não são bravos guerreiros".
A tentativa de caracterizar os ianomâmis como arquétipos de ferocidade seria patética, se não por suas consequências políticas, pela fabulosa distorção que esse mito perpetuou na biologia, antropologia e cultura popular. As consequências da fantasia ianomâmi podem ser vistas desde o filme "The Emerald Rain Forest" (no qual um grupo de homens-macacos chamados "O Povo Feroz" provoca um caos generalizado) até o livro de um primatologista de Harvard, Richard Wrangham, que apresenta toda uma seção sobre "índios ianomâmis e chimpanzés Gombe". (...)
Nem mesmo o mais inventivo cronista teria visualizado uma mitologia tão floreada como a que cientistas e diretores de filmes produziram para os ianomâmis e que foi encenada por eles. Acima das cataratas de Orinoco existe a mais estranha das histórias das ciências sociais -o Triângulo das Bermudas da antropologia.
"Começamos chamando de Macondo o Alto Orinoco, referência ao mundo surrealista de Gabriel García Márquez", diz Jesús Cardozo, presidente da Funvena (Fundação Venezuelana para Investigação Antropológica).
"Quando eu comecei a pesquisar entre os ianomâmis, me falaram 'Lizot vai matar você'". Pensei que era uma piada. Mas descobri que as coisas mais estranhas estavam acontecendo. Antropólogos ameaçavam uns aos outros com armas. Cada um tinha seu próprio feudo. Povoados eram denominados de Lizot e Chagnon, como se eles fossem grandes chefes ianomâmis. E os povoados refletiam a personalidade dos antropólogos. Os ianomâmis de Chagnon eram mais guerreiros do que qualquer outro grupo; o povoado de Lizot se tornou a capital do homossexualismo.
"Naturalmente, existe uma questão séria sobre violação de direitos humanos. Mas não me interessa trazer Lizot ou Chagnon frente a um tribunal internacional. Eu apenas acho que é importante para a antropologia, para a história da ciência, para a compreensão de como isso aconteceu e de qual o papel da mídia na criação desse estranho mundo novo. Porque à medida que Chagnon e Lizot se tornavam mais esquisitos, mais eles eram tratados como celebridades."
No discurso do Alto Orinoco, palavras como paranóico, sociopata, repugnante e criminoso são lugar comum -especialmente quando antropólogos falam sobre Chagnon. Chagnon, por sua vez, escreveu que seus críticos eram "canalhas".
"Eu acho que muitos antropólogos ficaram malucos entre os ianomâmis porque não existiam limites, nenhuma regra entre os ianomâmis", diz o missionário Michael Dawson, que passou 40 anos entre os índios. "Com suas ferramentas e armas, eles pareciam ianques de Connecticut na corte do rei Arthur. Eles podiam ser o que quisessem ser. Eles se tornaram deuses."
Para os ianomâmis, assim como para os gregos, uma prova de poder divino era a capacidade de trazer epidemias. Esse é, de maneira inquestionável, o legado mais expressivo de cientistas e jornalistas no Alto Orinoco. Com base em registros dos próprios cientistas, centenas de ianomâmis morreram como resultado direto de explorações e filmagens.
Eu fiquei surpreso em saber que a Comissão de Energia Atômica (AEC) custeou a primeira e a última expedição. Como eu requisitei os documentos da AEC, descobri que ela usou os ianomâmis como grupo de controle, comparando a raridade de suas mutações genéticas com as dos sobreviventes das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki.
O Departamento de Energia escreveu para mim: "Os resultados dessa pesquisa contribuíram para o nosso entendimento da natureza do desenvolvimento de mutações genéticas nos seres humanos e ajudou a cobrir uma lacuna entre estudos experimentais de mutagênese em animais e observações nas pessoas".
Para completar esses estudos, que ajudaram a AEC a estabelecer padrões de radiação nos Estados Unidos, a AEC precisou de grandes quantidades de sangue dos índios ianomâmi. Os pesquisadores estavam particularmente interessados na resposta dos ianomâmis a doenças.
Parece que a AEC elevava a pressão das doenças às quais os ianomâmis eram submetidos. Os cientistas, liderados pelo geneticista James Neel, administraram uma vacina viva de sarampo nos ianomâmis em 1968, que era, na linguagem das revistas médicas, "contra-indicada" -mas que se mostrou inestimável para os estudos genéticos de Neel.
Para os ianomâmis, os resultados foram menos auspiciosos: o sarampo se espalhou dos centros de vacinação para todas as direções. Cerca de 15% a 20% dos ianomâmis do Orinoco morreram de sarampo três meses após a vacinação.
Tradução de Isabel Gerhardt
Leia também:
Livro acusa cientistas de usar índios como cobaias
Cientista gaúcho defende colega dos EUA acusado
Leia mais notícias de ciência na Folha Online
Leia trechos do livro "Darkness in El Dorado"
da Folha de S.PauloA seguir, trechos de "Darkness in El Dorado", de Patrick Tierney:
Os ianomâmis podem permanecer para sempre como um enigma. Mas James Neel certamente escolheu o lugar errado e as pessoas erradas para experimentar e provar suas idéias sobre hierarquias de violência e seleção genética. Os ianomâmis possuem um baixo nível de homicídios pelos padrões mundiais de cultura tribal e mesmo baixos níveis para os padrões amazônicos. Na verdade, eles são covardes até, se comparados com muitas tribos, especialmente quando se trata de lidar com agressores de fora, como mineiros em busca de ouro. Como Chagnon apontou em sua tese de doutorado, "os ianomâmis não são bravos guerreiros".
A tentativa de caracterizar os ianomâmis como arquétipos de ferocidade seria patética, se não por suas consequências políticas, pela fabulosa distorção que esse mito perpetuou na biologia, antropologia e cultura popular. As consequências da fantasia ianomâmi podem ser vistas desde o filme "The Emerald Rain Forest" (no qual um grupo de homens-macacos chamados "O Povo Feroz" provoca um caos generalizado) até o livro de um primatologista de Harvard, Richard Wrangham, que apresenta toda uma seção sobre "índios ianomâmis e chimpanzés Gombe". (...)
Nem mesmo o mais inventivo cronista teria visualizado uma mitologia tão floreada como a que cientistas e diretores de filmes produziram para os ianomâmis e que foi encenada por eles. Acima das cataratas de Orinoco existe a mais estranha das histórias das ciências sociais -o Triângulo das Bermudas da antropologia.
"Começamos chamando de Macondo o Alto Orinoco, referência ao mundo surrealista de Gabriel García Márquez", diz Jesús Cardozo, presidente da Funvena (Fundação Venezuelana para Investigação Antropológica).
"Quando eu comecei a pesquisar entre os ianomâmis, me falaram 'Lizot vai matar você'". Pensei que era uma piada. Mas descobri que as coisas mais estranhas estavam acontecendo. Antropólogos ameaçavam uns aos outros com armas. Cada um tinha seu próprio feudo. Povoados eram denominados de Lizot e Chagnon, como se eles fossem grandes chefes ianomâmis. E os povoados refletiam a personalidade dos antropólogos. Os ianomâmis de Chagnon eram mais guerreiros do que qualquer outro grupo; o povoado de Lizot se tornou a capital do homossexualismo.
"Naturalmente, existe uma questão séria sobre violação de direitos humanos. Mas não me interessa trazer Lizot ou Chagnon frente a um tribunal internacional. Eu apenas acho que é importante para a antropologia, para a história da ciência, para a compreensão de como isso aconteceu e de qual o papel da mídia na criação desse estranho mundo novo. Porque à medida que Chagnon e Lizot se tornavam mais esquisitos, mais eles eram tratados como celebridades."
No discurso do Alto Orinoco, palavras como paranóico, sociopata, repugnante e criminoso são lugar comum -especialmente quando antropólogos falam sobre Chagnon. Chagnon, por sua vez, escreveu que seus críticos eram "canalhas".
"Eu acho que muitos antropólogos ficaram malucos entre os ianomâmis porque não existiam limites, nenhuma regra entre os ianomâmis", diz o missionário Michael Dawson, que passou 40 anos entre os índios. "Com suas ferramentas e armas, eles pareciam ianques de Connecticut na corte do rei Arthur. Eles podiam ser o que quisessem ser. Eles se tornaram deuses."
Para os ianomâmis, assim como para os gregos, uma prova de poder divino era a capacidade de trazer epidemias. Esse é, de maneira inquestionável, o legado mais expressivo de cientistas e jornalistas no Alto Orinoco. Com base em registros dos próprios cientistas, centenas de ianomâmis morreram como resultado direto de explorações e filmagens.
Eu fiquei surpreso em saber que a Comissão de Energia Atômica (AEC) custeou a primeira e a última expedição. Como eu requisitei os documentos da AEC, descobri que ela usou os ianomâmis como grupo de controle, comparando a raridade de suas mutações genéticas com as dos sobreviventes das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki.
O Departamento de Energia escreveu para mim: "Os resultados dessa pesquisa contribuíram para o nosso entendimento da natureza do desenvolvimento de mutações genéticas nos seres humanos e ajudou a cobrir uma lacuna entre estudos experimentais de mutagênese em animais e observações nas pessoas".
Para completar esses estudos, que ajudaram a AEC a estabelecer padrões de radiação nos Estados Unidos, a AEC precisou de grandes quantidades de sangue dos índios ianomâmi. Os pesquisadores estavam particularmente interessados na resposta dos ianomâmis a doenças.
Parece que a AEC elevava a pressão das doenças às quais os ianomâmis eram submetidos. Os cientistas, liderados pelo geneticista James Neel, administraram uma vacina viva de sarampo nos ianomâmis em 1968, que era, na linguagem das revistas médicas, "contra-indicada" -mas que se mostrou inestimável para os estudos genéticos de Neel.
Para os ianomâmis, os resultados foram menos auspiciosos: o sarampo se espalhou dos centros de vacinação para todas as direções. Cerca de 15% a 20% dos ianomâmis do Orinoco morreram de sarampo três meses após a vacinação.
Tradução de Isabel Gerhardt
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