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27/02/2001 - 04h32

Estado deveria negociar com detentos, diz Soares

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FERNANDO DE BARROS E SILVA, da Folha de S.Paulo

A força do PCC (Primeiro Comando da Capital) está sendo superestimada por interesses escusos e, se o Estado quiser enfrentar de fato o crime organizado, "deveria olhar menos para baixo, para o varejo do comércio ilegal nas favelas e periferias, e mais para o alto, para o andar de cima da sociedade, seguindo a trilha da lavagem do dinheiro e das pistas de pouso clandestinas".

Quem fala é o antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-coordenador de Segurança do Rio de Janeiro, que retorna ao Brasil no início de março, após um ano de exílio voluntário em Nova York, para onde viajou com a família fugindo de ameaças de morte.

Soares foi demitido pelo governador Anthony Garotinho em março do ano passado, depois de ter apontado a existência de uma suposta "banda podre" na polícia carioca. A partir do próximo dia 1º, muda-se para Porto Alegre (RS), onde irá montar um plano de segurança pública para a cidade, a pedido do prefeito, Tarso Genro (PT). Pretende ficar pelo menos até dezembro na cidade.

Segundo Soares, o governo paulista deveria, neste momento, se dispor a negociar abertamente com os detentos, ouvindo suas queixas e reivindicações.

"Seria uma tolice não negociar, sob o pretexto de reforçar a autoridade. Que autoridade? Essa que se permite representar, dentro das penitenciárias, por agentes que torturam, achacam, ameaçam, chantageiam e roubam? Já chega de prepotência", afirma.

Além disso, diz, é preciso que o Estado reconheça que o sistema penitenciário brasileiro faliu e se disponha a ouvir as entidades civis para reformá-lo radicalmente.

"Basta de continuar a enxugar gelo", diz. A seguir trechos da entrevista concedida de Nova York.

Folha - O sr. vê semelhança entre o movimento desencadeado pelo PCC e o crime organizado no Rio? Vê possibilidade de os grupos se articularem entre os Estados?
Luiz Eduardo Soares -
Semelhanças existem: grupos de presos adotam uma sigla e postulam a existência de uma unidade articulada e acesso a instrumentos de poder. Mas acho que as analogias param aí, na superfície.
Acho improvável que os grupos se organizem para valer mesmo dentro dos Estados, enquanto forem liderados por pobres operadores do varejo do tráfico, que não falam línguas estrangeiras, não sabem administrar negócios internacionais, não lavam dinheiro e têm acesso precário às elites.

Enquanto houver guerra entre traficantes, saberemos que a organização do crime é fragilíssima. Em geral, são meninos inexperientes e desesperados, sem rumo e sem projeto, que morrem cedo e são substituídos rapidamente, como peças de reposição.

Mas estou certo de que há, sim, grupos criminosos de nível superior que atuam em vários Estados. Para que os identifiquemos, teríamos de olhar menos para baixo, para o varejo do comércio ilegal nas favelas e periferias, e mais para o alto, para o andar de cima da sociedade, seguindo a trilha da lavagem do dinheiro e das pistas de pouso clandestinas.

Quando eu estava no governo do Rio, a Polícia Civil encontrou 22 aeroportos clandestinos. Montei um grupo interinstitucional para agir com urgência e profundidade. Desde que saí, não tive mais informações. Mas tudo indica que os aeroportos continuam funcionando.

As rotas supostas ligariam o litoral rico fluminense ao rico interior paulista. Angra dos Reis reúne a maior concentração de embarcações privadas do país. Nos fins-de-semana e nas férias, parte expressiva do PIB brasileiro toma banho de sol em suas ilhas e praias. O mercado mais poderoso do tráfico mobiliza aviões e articulações influentes.

Enquanto os aeroportos clandestinos provavelmente continuam servindo aos atacadistas de armas e drogas, a Secretaria de Segurança e a PM do Rio invadem as favelas de forma irresponsável e criminosa, colocando em risco a vida dos policiais e da população.

Folha - A megarrebelião em São Paulo não o surpreendeu?
Soares -
O que mais me choca é constatar que as décadas passam, os governos se sucedem e nós continuamos cúmplices, por inércia, da reprodução dessa máquina de moer gente, que é absurda, ineficaz, cruel e onerosa: o sistema penitenciário. Nenhuma providência radical é tomada e nós nos limitamos a criticar ou justificar a situação, quando explode uma crise. Comandos, celulares, grupos organizados, tudo isso é secundário diante do fato dramático que são as condições de nossos presídios. Continuamos encarcerando em proporções crescentes e não experimentamos a sério alternativas às penas de cerceamento da liberdade.

Folha - É possível estimar o grau de envolvimento de agentes penitenciários aos diretores do sistema com esses grupos organizados?
Soares -
Não conheço o caso paulista, mas, no Rio, sei que o envolvimento dos agentes é enorme. O secretário da Justiça é um homem sério e bem intencionado, mas não conta com o apoio do governador para intervir com energia e quebrar os elos que, desde 1995, ligam os agentes aos presos. O barril de pólvora é tão perigoso, no Rio, que as autoridades têm medo de mexer e provocar uma explosão sem paralelo. Há presos com 20 advogados, que os visitam várias vezes por dia. Há mais celulares do que na sede da Folha.

Folha - O governo decidiu endurecer com o PCC e não quer negociar. Deveria?
Soares -
Claro que sim. Seria uma tolice não negociar, sob o pretexto de reforçar a autoridade. Que autoridade? Essa que se permite representar, dentro das penitenciárias, por agentes que torturam, achacam, ameaçam, chantageiam e roubam? Basta de prepotência. A negociação pode ser o caminho para um início da reforma do inferno. Aí sim a autoridade se imporá com força e legitimidade. O foco agora deveria ser: vamos ouvir o que os presos têm a dizer, vamos abrir a questão para a sociedade com audácia, rever o sistema. Quem achar que isso estimularia mais revoltas, engana-se. Não conhece a realidade. O que estimula as revoltas, além de agentes corruptos, é a prepotência oficial, a arrogância do Estado, a humilhação, a violência cínica reiterada. É preciso estancar as fontes dos problemas, ou estaremos condenados a enxugar gelo.

Folha - Qual sua avaliação sobre a atuação do governo federal na área de segurança desde que foi lançado, em meados do ano passado, o Plano Nacional de Segurança?
Soares -
O Plano Nacional de Segurança é o modo mais vistoso de não se ter uma política. Não é um plano, muito menos uma política de segurança. É uma listagem heterogênea de problemas, iniciativas e metas as mais diferentes, com graus de relevância os mais diversos. Há alvos importantíssimos e questões secundárias.

Em alguns itens do plano, apresenta-se como compromisso original o que não passa de obrigação constitucional descumprida. Ao invés de definir três ou quatro grandes objetivos e investir neles os recursos e as energias, o plano tem a pretensão de atingir mais de cem metas. Ninguém, em sã consciência, pode acreditar que um governo federal postergue a problemática urgente e dramática da segurança pública para o sétimo ano de sua administração, defina mais de cem metas e tenha qualquer chance de cumpri-las.

Folha - O sr. foi convidado para desenvolver seu trabalho na Prefeitura de Porto Alegre. Essa experiência pode servir de laboratório para uma atuação na área de segurança em âmbito nacional?
Soares -
Fui convidado pelo prefeito Tarso Genro para desenhar um programa de segurança pública cidadã para Porto Alegre. Será um grande desafio, porque a tarefa nunca foi tentada e porque as determinações constitucionais restringem muito a ação municipal, na área da segurança. Mas, se a experiência for bem sucedida, poderá servir de referência nacional. Nesse sentido, Porto Alegre será um laboratório.
 

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