Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
19/04/2001 - 03h57

Índia cacique tenta evitar racha em aldeia guarani

Publicidade

RICARDO KOTSCHO, da Folha de S.Paulo

A apenas 22 quilômetros da praça da Sé, deitado no chão batido de um barraco de madeira de quatro metros quadrados, por onde passeiam galinhas e cachorros, Anibal Soares Oliveira, o Uerá, completa 96 anos hoje, Dia do Índio. Já não fala, quase não come e não consegue andar. Só olha.

É muito raro, entre os 350 mil índios brasileiros, alguém chegar a essa idade. Uerá é o símbolo da resistência das 26 famílias formadas por cem índios guaranis da aldeia Utu do pico do Jaraguá, mas não há nenhuma festa marcada para comemorar a data.

Quem zela por ele é o pagé Petenguá, José Fernandes, 60, seu filho mais velho, que mantém a tradição de reunir os índios da aldeia todo final de tarde para dançar e cantar ao som de dois violões e uma rabeca.

Não é preciso tocar sinos. Como faziam seus antepassados, passos lentos, cachimbão na boca, vão caminhando para a casa de reza, uma construção de pau-a-pique coberta com plástico preto. No lugar do altar, há uma cruz onde foi colocada uma pequena canoa.

O ritual se repete há 40 anos, quando Joaquim Augusto Martim, o cacique Kuarau, levou sua família para essas terras ao pé do pico de 1.135 metros, em frente à entrada para o parque estadual do Jaraguá.

Kuarau morreu há dez anos. Quem comanda a aldeia agora é uma mulher, Jandira Augusta Venício, 66, a cacique Keretchu (mãe de todos, em tupi-guarani), viúva de Kuarau, 13 filhos, oito ainda vivos. Forte e decidida, boa de memória, ela parece estar em todos os cantos ao mesmo tempo. Cuida de tudo.

Longa caminhada
Em meados do século passado, eles deixaram a aldeia Rio Branco, em Itanhaém, litoral sul de São Paulo, e subiram a serra do Mar. Instalaram-se primeiro numa casa abandonada em Parelheiros, na zona sul da cidade, ao lado da represa Guarapiranga. Levaram um dia inteiro de viagem a pé, lembra a cacique.

Kuarau foi ganhar a vida como jardineiro. O restante da família completava a renda vendendo artesanato. Quando algum índio adoecia na aldeia de Itanhaém, vinha procurar ajuda com o cacique em Parelheiros, uma espécie de posto avançado dos guaranis na capital. Tudo corria bem até o dia em que um menino morreu e os pais não se conformaram.

"Quase aconteceu uma desgraça", conta a viúva do cacique, sentada em frente à oca construída recentemente por estudantes da Universidade de São Paulo na entrada da aldeia, onde os índios fazem suas reuniões. "A criança morreu de pneumonia. Meu marido não conseguiu salvar. Aí os pais da criança ficaram bravos. Queriam matar Kuarau".

Professor ligado à Sociedade Geográfica Brasileira, Fausto Ribeiro de Barros, ficou sabendo da história e ofereceu abrigo ao cacique num terreno na estrada do pico do Jaraguá, próximo ao local onde vivem até hoje.

Invasões
Como a área era muito pequena para abrigar as famílias que acompanharam o cacique na sua retirada estratégica de Parelheiros, Mário Augusto Martim, 53, o filho mais velho, invadiu um terreno vizinho. Durante muitos anos, segundo o relato de Mário, o terreno de 20 mil metros quadrados foi disputado pelos índios com o posseiro Antonio Pereira Leite. "Uma vez, vieram uns dez jagunços aqui. Até derrubaram meu barraco." A demarcação da área, dando a posse aos índios, só aconteceria no governo José Sarney, em meados da década de 80.

Mas novas famílias continuavam chegando do litoral e de Parelheiros, tornando a aldeia pequena para garantir a sobrevivência de todos. A área onde eles ergueram suas malocas de madeira e algumas casas de alvenaria, às margens do córrego das Lavras, serviu no passado para um tanque de lavagem de ouro da Mineração Afonso Sardinha. Reviradas e cheias de cascalho, as terras não se prestam à lavoura. Ali só dá banana. E o córrego está secando. "Agora tem que pescar o peixe na feira", conforma-se Mário.

O jeito foi invadir outra área, bem em frente, do outro lado da rua Comendador J. de Matos, também reivindicada por Pereira Leite. A primeira a entrar lá, em 1995, foi a família de Eunice Augusto Martin, 45, a Ywapoty-Mirim. O litígio continua até hoje porque o terreno de 5.000 m2, para onde foram 16 famílias, ainda não está demarcado.

"O Incra falou que é terra da União. A AutoBAn (concessionária da rodovia Bandeirantes, que passa no fundo do terreno) falou que a terra é deles, mas não iria mexer com a gente. Dia desses, apareceu outro branco dizendo que a terra é dele. É muito branco para uma terra só...", brinca Ywapoty-Mirim, mãe de quatro filhos, entre eles Potu, a responsável pela educação na aldeia.

Escola fechada
Há tempos, a aldeia conta com alguns confortos da vida urbana: luz elétrica, televisão, orelhão, fogão a gás. Mas a grande conquista da comunidade indígena deve-se à luta de Potu, que conseguiu a construção de uma escola com três salas de aula dentro da aldeia. Erguida pela Fundação para o Desenvolvimento da Educação, órgão do governo do Estado, a Escola Estadual Aldeia Guarani está pronta desde o final do ano passado, mas continua fechada. As 60 crianças da aldeia frequentam diferentes escolas da região. Todas falam guarani e português.

Ywapoty-Mirim explica que a escola não pode funcionar enquanto não ficarem prontos os banheiros. A obra chegou a ser iniciada, mas os operários foram embora, alegando falta de material. Na semana passada, o material de construção chegou, mas os operários não voltaram ainda.

Também não voltaram mais as cestas básicas. Há seis meses, os funcionários da Funai suspenderam a entrega das cestas. "Eles falaram que o governo cortou as verbas, mas nós precisamos continuar comendo.
Ficou difícil", diz a cacique. O filho Mário nem sente tanta falta assim. "O que eles mandavam não dava para comer. Vinha bichinho andando dentro do saco, o feijão não cozinhava. Nem cachorro comia".

O primogênito da cacique é quem mais reclama da vida na aldeia. Marceneiro, deixou o último emprego em 1989. Vive de uma ou outra encomenda que lhe fazem, mas faltam-lhe ferramentas. "Faço guarda-roupa muito bom. Se eu tivesse uma serra circular, pegava mais serviço".
Atualmente, o único guarani com emprego fixo na aldeia é Jurandir, 24, neto da cacique, que trabalha como torneiro mecânico.

Lixo e cachorros
Outra queixa de Mário é a sujeira em volta da aldeia. Logo na entrada, um caminhão despejou na semana passada milhares de tampas de plástico vermelho. "Os brancos pensam que aqui é lixo. Largam cachorro de monte. O pior é que eles não saem mais daqui." De fato, a primeira impressão de quem chega à aldeia é a de que houve uma invasão canina. Apenas na casa da cacique são quatro fixos (Lobo, Lobinho, Xuxa e Princesa), fora os eventuais.

"Aqui na aldeia, toda família tem criança. E cada criança quer um cachorro", justifica a cacique. Se depender da aldeia guarani do pico do Jaraguá, a população indígena brasileira não vai parar de crescer. Eles, que eram entre 2 milhões e 4 milhões quando o Brasil foi descoberto, há 501 anos, estavam reduzidos a apenas 97 mil em 1970. A partir daí, a população voltou a crescer.

É grande a quantidade de crianças pequenas, correndo pelos terreiros entre cachorros, gansos, patos e galinhas, e de mulheres grávidas. Tem cada vez mais índio na tradicional festa de 20 de janeiro, quando são celebrados os casamentos e batizados. Nessa festa, é servido o tipá, um bolinho de trigo coberto com folhas de bananeira e assado nas cinzas.

De cima e de baixo
"Não aceito", decreta a cacique Keretchu, quando lhe falam das pretensões de seu enteado, Ari Augusto Martin, 60, o Karaí, que também quer ser cacique. Desde a sua chegada, há seis meses, vindo da aldeia de Ubatuba, no litoral norte, os guaranis urbanos estão ameaçados de ficarem divididos. Não só fisicamente -como já estão, separados entre a aldeia de cima e a de baixo pela estrada de asfalto que liga o Jaraguá a Pirituba- mas também politicamente.

Karaí já lançou sua candidatura a cacique da aldeia de cima. Tiara de pano prendendo os cabelos compridos, com jeito de índio de cinema, ele até já lançou uma plataforma eleitoral. Promete construir uma taba autêntica na beira da estrada para atrair turistas e cobrar ingressos de quem quiser assistir aos rituais dos índios.

A facção da aldeia de baixo, mais conservadora, limita-se a vender artesanato (colares a R$ 10) para ajudar na sobrevivência. Caminhando pelo terreiro, a cacique parece triste com a divisão. Lembra que, quando o marido morreu, chegou a chamar o filho Karaí para ser o cacique do Jaraguá, mas ele não aceitou.

"Agora, tanto tempo depois, aparece aqui e quer mandar? Ele até já bateu no Mário, que é irmão dele por parte de pai. Não vou deixar." Por isso, a cacique tem até evitado sair da aldeia para acompanhar os filhos nos passeios à cidade. "Está bem cuidadinha a aldeia. Para que vou sair daqui? Na cidade, tem muita gente, muito carro..." A cacique Keretchu não deixa de ter razão. A violência urbana ainda não chegou aqui. Apesar de tudo, vive-se melhor na aldeia dos guaranis do que em muito cortiço ou favela da cidade grande, logo ali ao lado.
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página