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04/11/2001 - 04h38

"Sem letras" pedem socorro ao mundo da TV

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ARMANDO ANTENORE
da Folha de S.Paulo

Querido Netinho. Querido Gugu. Querido Ratinho. Me dê uma casa. Um tratamento de saúde. Um emprego. Uma cesta básica.

Pedidos assim, à queima-roupa, andam despontando no posto do Poupatempo em Itaquera, zona leste de São Paulo. Ali funciona o "Escreve Cartas".

Inaugurado há duas semanas, o serviço gratuito oferece aquilo que o nome já indica: correspondências para os que não podem redigi-las. O remetente -em geral, analfabeto ou semi-alfabetizado- dita a mensagem, e um voluntário a transcreve.

O programa se desenrola também no Poupatempo de Santo Amaro (zona sul). É fruto de uma parceria do governo estadual com os Correios, que assumem todos os custos de postagem.

Um certo lirismo inspirou a ação. Ao lançá-la, o governador Geraldo Alckmin mencionou o filme "Central do Brasil", em que a protagonista presta um serviço parecido. "Nós vamos escrever cartas para quem quiser matar a saudade de parentes, amigos, filhos e, claro, de amores", avisam os 100 mil folhetos oficiais que divulgam a iniciativa.

A realidade, porém, se revelou mais dramática. Em meio às correspondências saudosas, pipocam apelos de socorro. Os alvos são celebridades da televisão.

Das 83 cartas que saíram de Itaquera, 28 tinham destinatários famosos. Doze visavam o pagodeiro Netinho, ex-vocalista do Negritude Jr., que hoje comanda o "Domingo da Gente", na Record. Nove iam para Gugu Liberato, do SBT. Cinco para Ratinho, igualmente do SBT. E duas para o bispo Edir Macedo, dono da Record.

Em comum, solicitações de moradia, trabalho, comida, atendimento médico. Impossível não notar o contra-senso: por meio de um projeto do Estado, os remetentes procuram astros da mídia na esperança de sanar necessidades que políticas públicas não conseguiram suprir.

"É natural que surjam demandas desse tipo em uma região tão carente quanto a nossa. Já percebi que muitos buscam o serviço não apenas para se corresponder, mas porque querem desabafar com os voluntários.
Desejam, no fundo, a cumplicidade de um ouvinte", avalia Plínio Ripari, gerente do Poupatempo em Itaquera.

Por ora, o posto de Santo Amaro, também numa área pobre, não encaminhou nenhuma carta a artistas (leia texto à direita).

Assistencialismo
"Coincidência? Certamente que não. É desespero", comentou a aposentada Antonia Tavares de Souza Rodrigues, depois de redigir mais uma mensagem para Netinho. Naquela terça-feira, os voluntários de Itaquera escreveram cinco correspondências. Três tentavam contato com o pagodeiro.

Uma levava a assinatura de Jane Rodrigues dos Santos. Desempregada e doente, a baiana de 21 anos suplicava para participar do "Princesa", um dos principais quadros do programa que o sambista apresenta.

Caso a escolham, terá o mesmo destino de outras felizardas: vai passar um dia inteiro com o ídolo, que a encherá de presentes. "Pensei bem. Só o Netinho pode me ajudar. Ele estende a mão. Não liga se somos pobres, falamos errado ou nos vestimos mal."

Como Jane, o auxiliar de enfermagem Aparecido Izidoro, 43, confia na generosidade do cantor. Cego, pediu-lhe por carta um tratamento oftalmológico em Cuba.

"Fico preocupado com tais atitudes", diz Netinho, 31. "É péssimo que o povo precise da TV para solucionar problemas essenciais."

Criado na Cohab de Carapicuíba (Grande SP), o pagodeiro conta que, quando concebeu o "Domingo da Gente", pretendia, sim, concretizar sonhos dos espectadores. "Mas não queria fazer assistencialismo. Imaginava doar coisas prazerosas, supérfluas -um passeio, um quarto bonito. Só que a vida real me atropelou."
 

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