Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
31/03/2002 - 06h13

Pais gays criam filhos sem preconceito

Publicidade

AURELIANO BIANCARELLI
da Folha de S.Paulo

Quem observa os cinco jogando cartas nas noites de sexta ou pescando aos sábados acha que eles formam uma família feliz. Eles dizem que é isso mesmo.

A família, no caso, é formada por um casal de lésbicas, dois adolescentes e uma menina. Nicole é companheira de Flávia, que vive com o filho Henrique e tem a guarda da neta Rita. Nicole "adotou" o sobrinho Thiago. As duas "mães" revezam as idas às reuniões de pais da escola.

Em Santa Luzia, na Grande Belo Horizonte, a rua Beija-Flor inteira conhece Yasmin, 3, que vive com o pai e o namorado do pai, o transexual "Loirinho". O caso é inédito porque a Justiça manteve a guarda para o pai fazendo constar que ele vive um casamento gay.

Com as devidas variantes, eles formam famílias homossexuais -ou famílias arco-íris, símbolo da diversidade adotado pelo movimento homossexual. Embora não haja estatísticas a respeito, as famílias alternativas vêm crescendo em número e visibilidade.

Se são felizes na aparência dos seus cotidianos, casamentos homossexuais continuam discriminados, negados pela lei, e seus integrantes desprotegidos. Seus direitos, quando reconhecidos, o são pela via da Justiça, como vem ocorrendo nos dois últimos anos.

O tema saiu dos guetos para o debate público quando Eugênia, a companheira de Cássia Eller, conseguiu na Justiça o direito da guarda de Chicão, filho da cantora morta no final do ano. A Justiça considerou que Eugênia ocupava o papel de mãe e tinha o direito à guarda do menino.

Vara da família
Dois anos atrás, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul adotou um procedimento que mudou o olhar sobre as ações envolvendo homossexuais. Mesmo quando se trata de partilha de bens, a competência passa a ser das varas de família, não mais das varas cíveis, como sempre foi.

O que antes a Justiça via como uma divisão de bens entre as duas partes, agora é visto como direito de família. Significa que, quando um morre ou rompe a relação, o outro terá direito à pensão e à herança, exatamente como numa família heterossexual.

"A vara da família considera que há entre as duas partes uma relação de afeto; o patrimônio é decorrência dessa relação", diz Maria Berenice Dias, desembargadora do TJ do Rio Grande do Sul e presidente da 7ª Câmara Cível que julga direito de família. Maria Berenice, 54, três filhos, diz que o reconhecimento da família homossexual está acontecendo pelas decisões judiciais, assim como ocorreu com as relações fora do casamento. "A Justiça pode mudar mais rapidamente que o legislador. Só espero que, no caso da família homossexual, a mudança não demore tanto", afirma. A juíza é autora do livro "União Homossexual: o Preconceito e a Justiça" (Livraria do Advogado).

Foi a câmara presidida por Maria Berenice que, em março do ano passado, reconheceu o direito de ser meeiro a um homossexual que mantinha relação estável com um companheiro. Pelo direito de família, o meeiro tem direito aos bens do companheiro. A decisão, inédita no país, impediu que a filha do parceiro, diante da morte do pai, obtivesse na Justiça o direito de ficar com toda a herança.

"O que ocorreu foi o reconhecimento da família pelos vínculos de afeto", diz a desembargadora. "Por aquela decisão, o conceito de família independe de casamento, opção sexual ou de que haja uma finalidade procriativa."

Além da decisão gaúcha, da guarda de Chicão, no Rio, e de Yasmin, em Minas, um quarto caso avançou no reconhecimento da "família homossexual". Em abril do ano passado, o Tribunal de Justiça da Bahia decidiu pela partilha de bens entre duas lésbicas que viveram juntas por cinco anos. Na separação, a que era dona do apartamento se negava a dividir o bem com a outra. "Como no Brasil não existe uma legislação para a divisão de bens entre homossexuais, nós nos baseamos na lei que rege o casamento tradicional", disse na época o desembargador Mário Albia.

Para muitos casais homossexuais, a "família" se completa com filhos adotivos ou a guarda de crianças ou adolescentes -assim como na família heterossexual a prole completa o casal.

Para as lésbicas, quando não trazem filhos de casamentos anteriores, valem as inseminações "caseiras" ou a "ajuda" de amigos. Aos gays, se já não têm filhos biológicos, o caminho mais frequente é a adoção ou a guarda de crianças. Estima-se, nos EUA, que 20% das crianças adotadas estejam com homossexuais.

Adoção
Pela lei brasileira, todo maior de 21 anos, casado ou solteiro, pode adotar, desde que se comprove as vantagens para a criança.

A adoção é decidida por um juiz com base no parecer de uma equipe de psicólogos e assistentes sociais que entrevista e visita os candidatos à adoção. O fato de ser homossexual e de viver com companheiro não deve pesar na decisão, embora isso possa ocorrer. "A lei pune qualquer discriminação", diz o juiz Siro Darlan, 51, quatro filhos, titular da Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro.

Segundo ele, o juizado já deferiu cerca de 20 adoções por "pessoas com preferência sexual diferente dos padrões", sem contar as que não declararam suas orientações sexuais. Para o juiz, a "lei brasileira já facilita a adoção": o que deve mudar "é a forma preconceituosa com que as pessoa ainda vêem o instituto da adoção".

O juiz Rodrigo Lobato Junqueira Enout, 47, três filhos, presidente da Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude, lembra que a adoção não depende apenas dos requisitos legais. "É preciso considerar a adequação da pessoa ao exercício das funções parentais", diz.

A lei não contempla a adoção por dois homens ou duas mulheres. Criada pelo casal homossexual, a criança só terá vínculos legais com aquele que a adotou.

Dar ao casal homossexual o mesmo status de família vai demorar. O projeto de lei que trata da "parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo", de autoria de Marta Suplicy com substitutivo de Roberto Jefferson, visa proteger os direitos à propriedade de duas pessoas do mesmo sexo. Empacado desde 1995, o projeto veda toda "disposição sobre a adoção, tutela ou guarda em conjunto, mesmo que filhos de um dos parceiros".

"O projeto já está superado porque não considera que há uma relação afetiva entre as partes", diz Eduardo Piza Gomes de Mello, 41, advogado e um dos autores do texto do projeto de parceria civil registrada. Mesmo limitado, Piza considera que o projeto é o passo possível neste momento.
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página