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16/08/2000 - 04h04

Livro mostra levante civil de 59 em Niterói

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MARCELO BERABA, da Folha de S.Paulo

No dia 22 de maio de 1959, uma sexta-feira, a cidade de Niterói, então capital do antigo Estado do Rio, virou praça de guerra. De 8h até por volta da meia-noite, quando o Exército tomou conta da situação, a população revoltada protagonizou um dos episódios mais violentos e cruéis da história recente das nossas cidades.

Inconformados com mais uma greve dos marítimos e com o desleixo permanente do serviço das barcas que ligavam a cidade ao Rio, então Distrito Federal, milhares de usuários depredaram e incendiaram o prédio, o cais e os armazéns da estação da Cantareira e iniciaram a série de quebra-quebras e incêndios que se estendeu por toda a cidade.

O saldo foi trágico: seis mortos e 125 feridos. A população descontrolada ignorou os fuzileiros navais que cuidavam da segurança da estação e a PM. Os bombeiros foram impedidos de trabalhar. As mangueiras eram cortadas e os caminhões-pipas, bloqueados.

As empresas que exploravam o transporte marítimo pertenciam à família Carreteiro, de imigrantes espanhóis. Os escritórios da empresa e as casas dos membros da família que viviam em Niterói foram invadidos e destruídos.

O cientista político Edson Nunes tinha apenas 12 anos e morava em Bom Jesus do Itabapoana, 300 km a noroeste de Niterói, quando leu a reportagem e viu as imagens do conflito na revista "O Cruzeiro", enquanto cortava o cabelo.

A força da violência ficou guardada e, em 1974, resolveu estudar o caso, que agora vira livro.

"A Revolta das Barcas - Populismo, Violência e Conflito Político", lançado pela editora Garamond, traz um relato minucioso sobre os incidentes de 59. A situação dos outros meios de transporte de massa (trens, bondes, ônibus) no Rio e nas principais capitais do país era igual ou pior do que a das barcas, tanto que volta e meia explodiam quebra-quebras. Mas nenhum com aquela violência.

Cerca de 100 mil pessoas cruzavam diariamente a baía de Guanabara. Para a população que morava em Niterói e trabalhava no Rio, as barcas eram o único meio de transporte.

Segundo Edson Nunes, vários fatores contribuíram para a explosão de
violência. A população vivia revoltada com a precariedade dos serviços.
A família Carreteiro era acusada de enriquecimento rápido à custa dos subsídios liberados pelo governo federal para o funcionamento de um serviço que era monopólio. Os marítimos viviam em greve para obter aumentos salariais.

Mas a principal razão, segundo Nunes, foi a inércia do governo Juscelino Kubitschek (56/61), amarrado entre compromissos conservadores e alianças populistas e impossibilitado de resolver conflitos políticos.

Para Nunes, o país mudou muito desde 64, e explosões como aquela seriam hoje mais difíceis, embora um dos principais problemas da época tenha se agravado, que é o da desigualdade social.

Ele percebe potencial explosivo nas favelas cariocas, embora ache que a força repressiva hoje impediria um conflito como aquele, que se arrastou por 16 horas.

Edson Nunes é pró-reitor da Universidade Cândido Mendes, no Rio. Foi
secretário-geral-adjunto da Secretaria de Planejamento da Presidência da República e presidente do IBGE no governo Sarney (85 a 90). A entrevista foi realizada no seu gabinete, no centro do Rio.

Folha - Como explicar um conflito como o de 1959?
Edson Nunes -
É uma combinação de fatores, mas que tem o governo como principal responsável. Nos Estados presidencialistas, como o nosso, o cidadão se vê refletido na imagem do presidente. Ele perde a sua percepção de auto-estima e de dignidade quando percebe a queda da auto-estima e da dignidade daquele que ele identifica como príncipe.

Isso cria uma onda de frustrações extremamente forte em relação às instituições. Você viu isso no governo Collor, o tamanho da ressaca que cria quando você perde a confiança na sua imagem refletida no espelho.
Você tem assistido o governo Fernando Henrique lutando exatamente contra esse problema da fratura da imagem, que leva a uma queda enorme de apoio e de popularidade.

Em 59, o governo Juscelino Kubitschek (56/61) está chegando ao fim com uma situação econômica complicada, porque usou a inflação para se financiar. Em determinado momento, perde a capacidade de governar porque perde a capacidade de contrariar interesses, porque as coligações que o sustentam estão mais instáveis.

Isso cria uma inércia, uma impossibilidade decisória de solução para o conflito. No caso, isso impediu que se pusesse uma tropa muito forte de dissuasão na rua.

Folha - A motivação da população é exclusivamente a da insatisfação com os serviços ou tem algum componente político-sindical?
Nunes -
Não, não tem. O que o episódio tem de político é no contexto de cidadania, e não no contexto de organização política de esquerda ou de direita.

O serviço das barcas já era ruim havia muito tempo. Havia um jogo no qual nenhum dos atores -governos federal e estadual, movimento sindical e empresa que explorava o serviço- tinha cacife para derrubar o outro.

Por meio daquele serviço se travava uma luta política em que o único ator que não tinha voz, o usuário, foi quem acabou resolvendo o problema.

Folha - Numa democracia, o papel de árbitro cabe à Justiça. Por que nesse caso das barcas a Justiça não interveio?
Nunes -
A Justiça não foi acionada. Hoje o Ministério Público tomaria a iniciativa, se poderia pensar em ação popular. Mas na época não tinha. Estamos falando de um país com uma rede de organizações civis muito mais tênue do que tem hoje.

Folha - Um dos fatores mais fortes de irritação da população eram as evidências de enriquecimento rápido da família Carreteiro, proprietária das barcas, o que lembra as reações que surgiram quando foram revelados os jardins da casa da Dinda, residência de Collor, ou o apartamento de Miami e os carros do juiz Nicolau.
Nunes -
Se você olhar para os Carreteiros, eles nem tão ricos eram se comparados com o que se vê hoje. Eram imigrantes, trabalhadores, inteligentes, competentes. Existe no imaginário popular a idéia de que a riqueza é sempre ilícita. Nos lugares onde o Estado permeia muito a relação com a economia, as populações vêem na riqueza uma maneira ilegítima de obter proteção do Estado.

Mas tenho a impressão que tem uma certa sabedoria nesse preconceito contra a riqueza. Toda a riqueza muito rápida feita no Brasil, de grupos sem tradição, o que é frequente, geralmente está associada a negócios com o Estado. Se são legítimos ou ilegítimos, não importa. Rapidamente são julgados como ilegítimos.

Folha - Você vê atualmente alguma situação com o mesmo potencial de explosão de violência?
Nunes -
Não. Até porque entre um período e outro aconteceu a revolução de 64. Os comandos das PMs foram centralizados e os aparatos de repressão e de inteligência foram equipados.

Há duas possibilidades: o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e as favelas.

Acho que o MST se vê como um movimento revolucionário, que prevê, de alguma maneira, uma insurreição. Uma crise nas favelas no Rio, um erro de mão, pode produzir uma catástrofe. Nós já vivemos à beira de algumas delas. Até porque as favelas hoje, sob o ponto de vista logístico, controlam as principais vias do Rio.

O MST ou uma revolta nas favelas são equivalentes funcionais do problema de Niterói, todos têm potencial de violência, de perda de vida e de propriedade até muito maior. O que faz a diferença? A maior capacidade repressiva hoje.

E a capacidade repressiva hoje tem mais autonomia do que tinha nos governos populistas. Existe um sistema de inteligência policial formado a partir de 64 muito melhor do que o de 59. Juntando inteligência com capacidade repressiva, é muito difícil que aconteçam movimentos que tenham a duração do de Niterói. Mas, que podem eclodir, não tenho dúvida.

Folha - E a insatisfação popular, é hoje maior ou menor do que em 59?
Nunes -
A situação está hoje mais grave. Estamos vivendo uma certa involução na noção de Estado moderno, e o Rio de Janeiro é um laboratório disso. O Estado moderno tem três cláusulas: soberania sobre o seu território, monopólio sobre o uso da força coatora legítima, portanto da ação armada, e o monopólio do uso da administração da Justiça.

O Estado do Rio de Janeiro não tem nenhum desses monopólios. A Justiça é administrada à pena de Talião, seja por qualquer dos lados em ação.
Soberania sobre o território, não temos mesmo. Aqui na universidade (Cândido Mendes), fazemos a avaliação do Favela-Bairro (programa social da Prefeitura do Rio) e temos de pedir licença para entrar no morro.

Agora, a terceira cláusula, monopólio sobre o uso das Forças Armadas legítimas, aí é brincadeira. Não tem mesmo.

Aí eu vejo potencial de problemas grandes. Mas esses potenciais, se ocorrerem, serão de uma carnificina inominável.

Folha - A explosão de Niterói derruba a tese do povo passivo, do homem comum tolerante?
Nunes -
Essa discussão é mal apresentada. O Brasil tem várias honras no mundo. Uma delas é ter uma das piores sociedades do planeta em termos de saúde, segurança, renda, educação. Que diabo de país cordial é este que tem uma das piores sociedades do planeta?

A vantagem e a perversidade da máquina de exclusão do Brasil é que ela é invisível. O comunismo soviético era visível.

Invisível e perversa porque consegue excluir da vida política e dos benefícios da democracia e da economia a maior parte dos brasileiros. É por meio da combinação perversa desse sofisticado e fascinante aparato brasileiro que você teve, sob o manto do homem cordial, a capacidade de criar essa desgraça social que é o Brasil, uma sociedade que está se transformando numa sociedade intolerável. Está chegando perto do limite da tolerabilidade viver num lugar em que você não pode usufruir de nenhuma das vantagens dessa concentração de renda cavalar.

Folha - É uma situação mais intolerável que em 59?
Nunes - Bem mais intolerável porque viemos piorando as estatísticas de distribuição de renda de lá para cá.

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